Leitura e Desporto

 

TEXTO_Musi FOTOGRAFIAS_Chi Fong U  ILUSTRADORA_Yolanda kog

 

“Desde que haja um caminho, percorrê-lo-ei com todas as minhas forças.” Nos últimos anos, a obra do romancista japonês Miura Shion, Run with the Wind, foi adaptada para animação, trazendo novamente este original a conhecimento do público. Tanto a Maratona Internacional de Macau, com milhares de participantes, como a Regata Internacional de Macau, as Regatas Internacionais de Barcos-Dragão e o Grande Prémio de Macau, entre outros eventos desportivos de alto nível, remetem-nos para este movimento. Com a chegada da 15.ª edição dos Jogos Nacionais, a onda do desporto chegou à cidade.

Para os que desejam começar a praticar desporto, mas não sabem por onde começar, utilizar a leitura para esse despertar é uma excelente abordagem. Ao pesquisar a palavra “desporto”, na página electrónica da Biblioteca Pública do Instituto Cultural, é possível encontrar mais de duas mil referências ao tema, desde guias de treino profissional até histórias inspiradoras de desporto, tudo está disponível. Por que razão o desporto e a leitura conseguem gerar uma reacção química? Vamos abordar e explorar os seus mistérios e encantos.

01 A Sabedoria de A Arte da Guerra integrada no ensino do desporto —— Entrevista com o treinador de badminton Lam Hou Him

 

 

“O desporto e a leitura são essencialmente a mesma coisa.” Para o treinador de badminton Lam Hou Him, são duas linhas paralelas que parece nunca se cruzarem mas, na verdade, têm um ponto de intersecção - são caminhos para a auto-aperfeiçoamento.

O termo desporto é frequentemente associado à competição, e Lam Hou Him acredita que existem muitos pontos em comum entre as guerras na antiguidade e as competições desportivas modernas. O clássico militar chinês A Arte da Guerra, escrito pelo famoso estratega militar Sun Wu, aborda todos os aspectos da guerra, incluindo estratégia, táctica e princípios de comando. O treinador admite: “Admiro imenso os antigos estrategas militares, pois nas guerras paga-se com a própria vida; as estratégias são mais abrangentes, pelo que quero entender a sua ciência.” Combina assim as ideias que extraiu de A Arte da Guerra com o ensino.

Como ex-jogador registado na Federação Mundial de Badminton (BWF) e jogador honorário da Federação de Badminton de Macau, Lam Hou Him não só ensina técnicas de badminton aos seus alunos, mas também os orienta a reflectir sobre “como se tornar um atleta”. “Se conheces o inimigo e se também te conheces a ti, não precisas temer o resultado de 100 batalhas. Se te conheces a ti mesmo, mas não conheces o adversário, para cada vitória alcançada também sofrerás uma derrota. Se não conheces nem o adversário nem a ti mesmo, sucumbirás em todas as batalhas.” [1]Esta é uma das citações que o treinador mais preza. No ensino, costuma dizer aos alunos que a competição está em todo o lado, e que os atletas devem estar sempre cientes do seu corpo, das suas habilidades e do seu estado psicológico. Incentiva os alunos a, durante os treinos, explorar as suas próprias capacidades, em vez de imitarem padrões de outros, alcançando assim o “conhecer-se a si mesmo”.

A percepção do estado competitivo do adversário, ou “conhecer o inimigo”, é igualmente importante em A Arte da Guerra. Lam Hou Him ficou especialmente impressionado com a palavra “situação” na frase “Enquanto atento à estratégia favorável, cria uma situação que sirva de condição externa para ajudar as operações.”. Usa a água como exemplo, a água muda de forma conforme o recipiente, pelo que os atletas não devem ser inflexíveis. Menciona também “cálculos estratégicos baseados em inteligência” que se referem aos rituais e às estratégias que os guerreiros de outrora realizavam no templo antes de irem para os confrontos. Antes de uma competição, aqueles que conhecem o inimigo e a si próprios podem formular estratégias apropriadas para o cenário.

Através da leitura de A Arte da Guerra, o treinador dialoga com os predecessores, destilando a sabedoria do livro e integrando-a no contexto da vida. Estas ideias não se aplicam apenas no campo de jogo, mas podem ser estendidas a todos os aspectos da vida. Quando o conhecimento e a acção estão em uníssono, as pessoas conseguem vencer todas as circunstâncias.

 

 

[1] Sun Wu, A Arte da Guerra (Período das Primaveras e Outonos), Beijing United Publishing CO., Ltd, 2015, p. 17.

02 Desporto e leitura de mãos dadas —— Entrevista com Kam Wai Tong, a versatilidade da vida

 

 

Numa vida agitada, como equilibrar diversos interesses? Kam Wai Tong tem bastante experiência nesta área. Nos últimos quatro anos, além de cuidar da família e da carreira, ocupa o cargo de presidente da Associação de Popularização da Leitura de Macau (em tradução livre) organizou quase cinquenta actividades relacionadas com a leitura, e como entusiasta de corrida de fundo, participou em 13 maratonas e 3 campeonatos de corta-mato. Quando questionado sobre os desafios que encontrou durante o processo de equilíbrio, ele sorriu e respondeu: “Não há desafios.”

O atleta compara a leitura e o exercício físico com o comer e o dormir. Acredita que os desafios trazem muitas vezes pressão, e quando uma certa acção se transforma num hábito, deixa de ser vista como um desafio, tornando-se uma norma de vida. Para ele, a chave para cultivar hábitos está na gestão do tempo e estabelece regularmente planos de exercício físico para si.

Na sua programação de exercícios, Kam Wai Tong reserva cinco dias da semana para praticar desporto. Todos os dias, quando acorda, verifica os dados no smartwatch, incluindo a variabilidade da frequência cardíaca, a qualidade do sono e o estado de recuperação física, decidindo assim se precisa de ajustar o treino. Simultaneamente, para evitar que a corrida contínua cause a síndrome da fadiga crónica, ou seja, um estado de fadiga acumulada, ele reserva intencionalmente dois dias por semana para dias de descanso, mantendo a sustentabilidade do plano de forma científica.

Entre o exercício e a leitura pode surgir uma química maravilhosa. Revela ainda que, após ter estabelecido o hábito do exercício, consegue entrar rapidamente no estado de leitura em apenas um minuto, com um nível de concentração significativamente superior ao que tinha antes de criar este hábito. Pelo que, costuma agendar a leitura para depois do exercício físico.

Kam Wai Tong lê um livro por semana. A duração da leitura depende do seu estado mental. Ajusta as suas expectativas e não impõe uma meta, prefere optar pela qualidade da leitura. Quando se sente com energia, lê entre uma a duas horas; quando está cansado, reduz o tempo para cerca de meia hora. A escolha dos livros varia conforme o estado de espírito e abrange temas como literatura, psicologia e história, conforme as suas necessidades.

A leitura causa mudanças psicológicas e cognitivas, enquanto o exercício físico é a concretização do conhecimento em prática, uma influência mútua. Kam Wai Tong, através da leitura e do exercício, fortalece constantemente a sua vida. Através desta partilha, espera inspirar mais pessoas.

 

 

03 Praticar Wing Chun através dos livros —— Entrevista com o mestre de Wing Chun, Lei Kin Hou

 

 

Wing Chun, não é apenas uma arte marcial tradicional chinesa, é também parte do património cultural imaterial nacional. Aprender Wing Chun através da leitura não só permite uma compreensão mais profunda do espírito por trás desta modalidade, como também aprofunda o interesse pela mesma.

Para ajudar quem quiser a iniciar a prática de Wing Chun, Lei Kin Hou, conhecido como o Mestre de Wing Chun de Macau, recomenda o livro The Book Of  Wing Chun From-sets: Tiny Idea, Detecting Hand-bridge and Darting Fingers (Siu Nim Tau, Chum Kiu, Biu Jee). Aponta que, “o livro foca o ensino das técnicas, abrangendo todos os aspectos, desde o 'chi' até às formas.” O diálogo com o mestre Chu Shong Tin através deste livro, ajudar-nos-á a aprofundar o nosso conhecimento sobre técnicas de Wing Chun, incluindo a utilização de cada articulação, os ângulos dos pés e as posturas.

Aprender Wing Chun permite a auto-defesa e a melhoria da condição física. O mestre de Macau revela que a leitura e o desporto têm algo em comum, usa a forma introdutória de Wing Chun, Pequena Ideia, como exemplo, e explica que “a Pequena Ideia começa com conceitos pequenos; é necessário acalmar a mente e esvaziar os pensamentos para absorver todo o conjunto da técnica.” Este processo é semelhante ao da leitura, onde também é preciso foco para nos envolvermos completamente e assimilarmos o conhecimento. Além disso, “uma das características do exercício de Wing Chun é a coordenação entre a mão esquerda e a direita, o que implica uma harmonia entre os hemisférios esquerdo e direito do cérebro, facto essencial para se aprender bem Wing Chun.” Portanto, praticar mais Wing Chun pode aumentar a coordenação entre os hemisférios esquerdo e direito do cérebro, melhorando assim a leitura e a aprendizagem.

O mestre seleccionou o movimento Protecção das Mãos para ajudar a movimentar os pulsos. Os leitores podem aproveitar para activar os músculos e ossos enquanto lêem, alcançando assim uma combinação de leitura e exercício!

 

 

Sugestões

1. Técnica de Respiração: Durante o exercício, recomenda-se a respiração diafragmática, mantendo a velocidade respiratória estável, evitando que seja demasiado rápida.

2. Frequência dos Movimentos: Recomendase realizar cada movimento três vezes, e alternar entre a esquerda e a direita. Se o tempo permitir, é aconselhável continuar durante dez a quinze minutos para activar o corpo.

 

Protecção das Mãos

Objectivo: Aumentar a força dos pulsos, melhorar a flexibilidade e a coordenação.

Método: Como se mostra na imagem, abra uma mão, mantendo a articulação do pulso firme, movimente o cotovelo e gire os dedos para dentro e depois para o tecto, realizando movimentos circulares para dentro. Durante este processo, preste atenção à sensação de resistência no pulso, que é o reflexo do efeito do treino.

 

  

 

 

The Book of Wing Chun From-sets: Tiny Idea, Detecting Hand-bridge and Darting Fingers (Siu Nim Tau, Chum Kiu, Biu Jee)

▸ The Book of Wing Chun From-sets: Tiny Idea, Detecting Hand-bridge and Darting Fingers (Siu Nim Tau, Chum Kiu, Biu Jee)

Autor:Chu Shong Tin

Editora:SocioPublishing Co., Ltd.

Data de Publicação:2013

04 A intersecção científica entre leitura e desporto —— Entrevista com o investigador em ciências do desporto Ning ZiHeng

 

 

O exercício físico pode promover eficazmente o desenvolvimento global das pessoas a níveis cognitivo, físico e psicológico, e o investigador em ciências do desporto Ning ZiHeng considera que esta é mesmo uma forma de terapia sem efeitos secundários. Surpreendentemente, existe também uma interacção entre a leitura e o desporto, onde ambos podem complementar-se mutuamente.

 

1. Leitura antes do exercício: estimular o interesse e a motivação

A leitura de livros relacionados com objectivos pode aumentar a taxa de conversão do comportamento dos leitores em 20%. Ning ZiHeng defende que livros que incluem psicologia do desporto, técnicas de fitness ou biografias de figuras do desporto. Estes livros ajudam a construir uma consciência relevante, compreendendo melhor os benefícios do exercício, o que por sua vez estimula o interesse e a motivação.

 

2. Leitura durante o exercício: aliviar o tédio e a fadiga

Ning ZiHeng, usando a corrida como exemplo, salientou que os corredores que ouvem audio-livros enquanto correm distraem-se mais, e aliviam o tédio e o desconforto físico durante o exercício. Os atletas que escutam audiolivros enquanto correm conseguem, em média, correr mais 12 minutos do que aqueles que apenas ouvem música. Ao mesmo tempo, estão a absorver conhecimentos de forma descontraída enquanto praticam as modalidades.

 

3. Leitura após o exercício: reforçar a memória da aprendizagem

Após o exercício, a concentração do factor neurotrófico do cérebro (BrainDerived Neurotrophic Factor) aumenta, e o cérebro encontra-se num estado extremamente activo. Ning ZiHeng aponta que, durante este período, realizar 15 minutos ou meia hora de leitura permite entrar rapidamente num estado de aprendizagem cuja taxa de retenção de memória é 20% superior àquela que se verifica em estado sedentário, o que favorece o aumento da assimilação e da memorização das informações.

 

 

 

Sugestões

Por fim, Ning ZiHeng oferece estratégias que combinam a leitura com a actividade física, com o objectivo de ajudar os leitores a aplicar na prática o que lêem.

1. Definir objectivos duplos: Após completar dez sessões de exercício, recompense-se com um livro que deseje.

2. Agendar horários fixos: Após cada treino, leia durante dez a quinze minutos, criando um hábito que consolide o conhecimento e melhore a capacidade cognitiva.

3. Sincronizar a lista de leitura com o plano de exercício: Crie uma lista que inclua os livros para ler e a quilometragem de exercício e registe o progresso de ambos para se motivar.

4. Socialmente: Participe em clubes de leitura e desporto, online ou offline, para partilhar os progressos e também os sentimentos, aumentando a inter-acção social.

 

 

Quatro passos para criar hábitos de longo prazo

A combinação da leitura e da actividade física pode ajudar-nos a construir um estilo de vida com qualidade. Mas como fazer da leitura e do desporto uma parte da vida e estabelecer hábitos de longo prazo? Quatro entrevistados partilham conselhos práticos, tendo o exercício como exemplo e a esperança de poder inspirar.

 

1. Como definir objectivos?

Ning ZiHeng: Os leitores podem definir os seus objectivos de acordo com o princípio SMART, que exige que os objectivos sejam específicos (Specific), mensuráveis (Measurable), atingíveis (Achievable), relevantes (Relevant) e calendarizados (Time-bound). Por exemplo, caso se pretenda melhorar a capacidade cardio-respiratória, podemos estabelecer o objectivo de “completar dez corridas num mês”. Este objectivo é desafiante e alcançável. Ao registar o tempo e a distância de cada treino, é possível acompanhar o progresso de forma eficaz, garantindo uma optimização contínua.

 

2. Como executar o plano?

Lam Hou Him: Após definir objectivos concretos, deve-se agir imediatamente. O mais importante é estabelecer a confiança durante o exercício físico e sentir prazer e sucesso. Uma vez que a confiança é construída, o corpo naturalmente envia o sinal “estou pronto”, aumentando assim a capacidade de execução. Além disso, o mecanismo de recompensa é também fundamental. Após a prática do exercício, pode fazer algo de que gosta ou comprar algo que deseja, como forma de motivação.

 

3. Como ajustar o estado de espírito?

Lei Kin Hou: Podemos aprender a ajustar o nosso estado de espírito através do exercício. Tomando o Wing Chun como exemplo, esta prática enfatiza a calma do corpo e da mente, utilizando a respiração diafragmática durante o exercício. Ao inspirar, deve direccionar-se a respiração para o dantian, sentindo a força interior; ao expirar, deve retirar-se lentamente a respiração para libertar a tensão e o stress. Esta coordenação entre a respiração e o movimento requer uma concentração total e é uma forma eficaz de ajustarmos o nosso estado de espírito.

 

4. Como rever o plano?

Kam Wai Tong: A revisão divide-se principalmente na monitorização diária e na reflexão mensal. Todas as manhãs, analiso os dados do meu smartwatch para avaliar quantitativamente se consigo atingir os objectivos de treino e faço os ajustes necessários. Mensalmente, também revejo a minha agenda e avalio se é necessário algum ajuste significativo na velocidade ou na carga, para garantir a eficácia do treino.

 

Como integrar o conteúdo dos livros na vida quotidiana? Como equilibrar a leitura e o desporto? Quais são os pontos em comum entre o exercício e a leitura? Academicamente, como podemos explicar as reacções científicas que surgem entre a combinação da leitura e do desporto? E como devemos elaborar um plano? Os quatro entrevistados, através das suas próprias experiências, partilham a teórica e a prática. Esperemos que todos decidam dar o primeiro passo e possam sentir a dupla dinâmica entre corpo e mente, e avançar para um estilo de vida saudável e duradouro.