Amor e Dedinhos de Pé  - A redenção de um ignóbil folião de Macau Nelson Moura

Nelson Moura é um jornalista, tradutor e editor baseado em Macau desde 2016. Escreveu e cobriu os mais variados assuntos na Cidade do Santo Nome de Deus, desde política e cultura, a crime e economia.

Amor e Dedinhos de Pé - A redenção de um ignóbil folião de Macau

O título alternativo desta deliciosa obra de Henrique Senna Fernandes poderia ser a “A ascensão, queda e redenção de um ignóbil folião de Macau”.A obra de Fernandes, o mais renomeado escritor macaense, lê-se quase como um conto moral dos riscos da má-educação e excessivo mimo de crianças. A escrita de Fernandes assemelha-se a um Eça de Queiroz, se este usasse eximiamente o patuá, o dialecto local que tão bem se ajusta a este conto trágico-cómico. Mas em vez de Carlos da Maia temos as crónicas da transformação de Francisco “Chico” Frontaria, menino de boas famílias e auto-intitulado pândego, em bobo da festa e Chico-Pe-Fedê, o miserável parvo da aldeia de Macau.

 

Um dos grandes talentos de Fernandes é sem dúvida a sua capacidade de estabelecer o contraste entre a cidade mui cristã e conservadora do “Nome de Deus de Macau” e a pândega e carnaval, que os seus habitantes “cristãos” mui apreciam também. Oferece também uma visão de nuance de um escritor que conhece bem as diferentes comunidades que tentam coexistir em harmonia em Macau.

A mestria e domínio do autor no uso de patuá providencia também um colorido local com o próprio a admitir no prefácio que o dialecto local que este domina é “mais doce e sugestivo” ouvido do que lido, sendo impossível traduzir em linguagem escrita todas as suas nuances e inflexões de sotaque, pronúncia e entoação.

Mesmo assim, a miríade de expressões deliciosas de patuá ajuda um leitor português menos acostumado ao dialecto a apreciar o seu quotidiano e maravilhoso efeito cómico e satírico neste livro. Completo com um glossário de expressões como malinguar (difamar) e chacha-velha (mulher velha), em conjunto com aliterações de cantonês como fan-tim (restaurante) e cha-koi (casa de chá), um leitor não familiarizado pode ganhar um conhecimento mais profundo com o ambiente cultural único da cidade.

Qualquer actual residente da actual selva urbana de Macau vai sem dúvida também apreciar este olhar histórico a uma cidade tão diferente em que personagens se deslocam ao Jardim de São Francisco perto da Avenida da Praia Grande para apreciar a maresia, e em que a Areia Preta está polvilhada de chácaras e hortas em que se caçam aves selvagens.

Parte de uma reedição do Instituto Cultural da obra completa do que é indiscutivelmente o mais distinto autor macaense em português, o grande volume da obra esconde uma leitura que se consome vorazmente como um bom porco balichão-tamarindo.

Mas comecemos pelo princípio, centrada no início do século XX, a história começa por apresentar a história da prestigiada família Frontaria conhecida pelos seus lorcheiros, destemidos capitães das também muito macaenses lorchas, uma fusão entre construções navais europeias e chinesas. Essa muito honrada linhagem desembarca em Francisco da Mota Frontaria, órfão criado e excessivamente mimado pela tia, Títi Bita. Inteligente, mas “avesso aos estudos” já aos 13 anos, Francisco passou a demonstrar uma “grande tendência para a boémia” que seria o seu grande talento e perdição.

A morte da tia deixar-lhe-ia com uma fortuna e mansão, que depressa esbanjou em mulheres e folia, tendo crescido “irresponsável, preguiçoso e egoísta” enquanto adulado por um grupo de “parasitas bajuladores” que o sugaram até ao tutano.

O livro detalha as desventuras deste incontestável rei do Carnaval, os seus muitos casos amorosos e travessuras diversas, incluindo a “suprema proeza” final que leva Francisco a ser expulso da "cidade cristã". Numa tentativa de brincadeira suprema, o nosso “herói” pede em casamento uma das três filhas solteiras do Sr. Saturnino com o único propósito de saborear o “excelente vinho do porto” que este oferecia aos pretendentes. No dia do casamento planeado, Francisco encerra sua “memorável peça de humor teatral” ao aparecer como uma figura carnavalesca, claramente desonrando o pai, a noiva, e restante família e convidados.

A proeza seria a última gota que levaria Francisco Frontaria a ser abandonado pelo tio severo, pelos supostos amigos, as muitas namoradas que precisava e descer para um ciclo de autodestruição em que, desempregado, acaba como pobre figura vivendo num cubículo infecto do porto interior e abusado e dependente de A-Tai, mulherona de modos grosseiros, que lhe fornecia uns poucos tostões e muita porrada à mistura.

O nosso autor tem o cuidado de elaborar que, apesar de inconsciente, o nosso protagonista possui capacidades redentoras de empatia e bondade, que permanecem infelizmente atrofiados pela sua completa inaptidão de manter uma vida honesta e impoluta.

A certa altura, desesperado por dinheiro, Francisco ajuda um rico comerciante chinês a “comprar” a filha menor de um pobre pescador da Ilha Verde como concubina. A conclusão de tão ignóbil missão levaria lágrimas aos olhos de Chico, coberto de remorso.

A descida aos infernos de Chico ficaria completa quando, atacado por uma estranha maleita, fica com os pés cobertos de bolhas e pústulas, certo acossado por uma comichão ardente e passando a trazer um cheiro nauseabundo por onde passa, que resultaria no seu novo nome Chico-Pe-Fedê. Expulso do seu cubículo pela sua única protectora, Chico acaba na rua, atormentado pelo frio, fome e por esta estranha maleita de pés que nada parece curar.

A este ponto o nosso conto moral atinge o início da curva da redenção, mudando o foco para a segunda protagonista da história, Victorina. O leitor passa a conhecer a Victorina Padilla, outra personagem trágica de contornos de gata-borralheira, filha de Hipólito Vidal, outro menino de boas famílias que acaba vítima de uma “cabeçada” inconsequente que o prende para sempre à família Padilla, ao engravidar uma das filhas de um curandeiro espanhol irascível e especialista no trato de doenças sexualmente transmissíveis. Maltratada pela família e abandonada pelo pai, também ele abandonado pela família após a desonra, seguimos o trajecto de Victorina, mulher desprovida de encantos físicos, mas com inegável talento de enfermeira.

Como não podia deixar de ser, Victorina é também uma vítima passada das brincadeiras de Chico. Mulher “triste, vesga, e condenada a ficar solteira” que acaba apelidada Varapau-de-Osso após ter a “ousadia” de recusar-lhe uma dança que este pretendia em jeito jocoso.

Estas duas figuras “homericamente” trágicas acabam novamente por chocar numa noite fria e chuvosa, com Victorina a acabar por acolher Chico-Pe-Fedê e conseguindo miraculosamente recuperar a saúde e humanidade do nosso herói, apesar do risco para a sua reputação.

Comovido pela ajuda, Chico não consegue deixar de cair em amor profundo pela sua antiga vítima e, com a sua ajuda, completa a sua redenção social na sociedade macaense. Como nos bons contos, tudo está bem quando acaba bem e Chico acaba como “marido exemplar, pai extremoso” agora “asseado e bem-posto” na sua nova casa do Lilau. Chico acaba a retomar o seu papel activo no Carnaval, agora sem as partidas ignóbeis.

Amor e dedinhos de pé

▸ Amor e dedinhos de pé

Author:Henrique de Senna Fernandes

Publishing House:Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau

Year of Publication:2012

Kafka's Metamorphosis: An Absurd Tale Unveiling Harsh Realities Therese Tu

Editor, journalist, and book lover. Therese writes in English and Chinese for media outlets in Macao and the Greater Bay Area. She holds a master’s degree in communication and new media, with study experiences in Macao, Sweden and Canada.

Kafka's Metamorphosis: An Absurd Tale Unveiling Harsh Realities

2024 marks the 100th anniversary of the passing of Franz Kafka, a literary luminary regarded as one of the most significant novelists of the 20th century. Even today, Kafka's writings continue to resonate profoundly with modern readers. Among his most renowned works stands The Metamorphosis, a story that continues to captivate audiences with its poignant reflections on humanity and society. This surreal tale, invites readers to ponder life's complexities and the quandaries that continue to exist in our shared human experience.

 

Imagine waking up one morning and finding yourself transformed into a giant insect—how would you react to such a bizarre turn of events? The Metamorphosis tells such a ludicrous story that delves deep into the realms of identity, human relationships, the absurdity of existence and alienation. When discovering that he has turned into a huge vermin, the story's protagonist Gregor Samsa, a hard-working travelling salesman, is less concerned about why this horrible transformation happened to him and more worried about whether he is still able to catch the 7 a.m. train to work. He grapples with the fears of the potential criticism from his boss for being late and the perceptions of his family members on his weird changes. As expected, when he finally struggles to show up in front of everyone, they react with horror, fear, and disgust.

Before this incident occurred, Gregor's family depended on the hard-earned wages he brought home through tireless work to maintain a satisfied life. This diligent salesman, weighed down by his daily work, was the sole breadwinner of the household. However, when he undergoes a terrible metamorphosis into an insect, Gregor's family exhibits a chilling lack of empathy towards him. Only his little sister shows a modicum of care, tending to his needs and praying for his return to normalcy. Despite their cold treatment, Gregor refrains from blaming his kin, instead bearing a heavy burden of shame and sorrow for his inability to provide as he once did.

As his family members struggle to secure their livelihood, their attitude towards Gregor becomes more perfunctory with each passing day. One day, when Gregor's appearance repels the house lodgers, even his once-kind sister reaches her breaking point, denouncing him as a trouble and urging his expulsion from their lives. His sister says, “I don't want to call this monster my brother, all I can say is: we have to try and get rid of it. We've done all that's humanly possible to look after it and be patient, I don't think anyone could accuse us of doing anything wrong.”

At the end, Gregor dies in his room alone, isolated by his family who locks him in his room. In his last moments, he bears no resentment toward his kin. Kafka writes: “He thought back on his family with deep emotion and love. His conviction that he would have to disappear was, if possible, even firmer than his sister's.” Following his passing, a sense of relief washes over his family, they swiftly leave the house, hoping to embark on a fresh chapter in their lives.

A good son, brother, and employee—upon morphing into an insect and losing his usefulness and value, he is immediately abandoned by everyone, to the point where he abandons himself. This story reflects a stark reality not uncommon in our world. How many people, like Gregor, are suffocated by the weight of work, yet dare not pause for a moment, fearing the loss of their value and facing abandonment by their company or even those closest to them? In the present era marked by global economic downturns, worldwide job cuts, and the atomization of society, Kafka's absurd tale, written a century ago, seems increasingly realistic. As we witness the disintegration of traditional social structures and the dehumanization of work policies, The Metamorphosis can help us to reflect the complexities and challenges of modern life.

As one of Kafka's most celebrated novels, The Metamorphosis presents readers with the absurdity of life and human existence. Chaos, isolation, and meaninglessness—these recurring motifs in Kafka's works, find poignant expression in this fiction. The protagonist serves as a lowly and inconsequential cog within the bureaucratic machinery, while his transformation into a vermin lays bare the harsh aspect of hypocrisy and indifference in human relationships. Throughout this story, Gregor is always at the mercy of circumstances and subject to the whims of fate. Whether before or after his metamorphosis into a vermin, his destiny is not a product of his own decisions but is instead dictated by the constraints imposed by society and family. Hindered from actively steering his own course in life or pondering the essence of his existence, he finds himself perpetually adrift in a fog of uncertainty, ultimately meeting a chaotic and uncontrollable demise. Through Kafka's lens, the story unfolds with dark humor and a profound sense of the absurd, resonating with readers as it mirrors the common experiences of coping with life's absurdities and challenges.

In the fiction, a sad reality of modern industrial society is revealed: the general alienation of individuals from themselves and from the others. People exist like commodities, and their relationships are reduced to transactional exchanges that are devoid of human touch. In everyday scenarios, families, couples, and friends seem harmonious until tested by hardships like job loss or illness, where relationships can rapidly unravel. Rather than being considered as individuals with intrinsic worth, people are treated as objects. As financial ties are cut, relationships quickly degrade. While physical transformations into vermin do not mirror our reality, the isolation and entrenched fears depicted in Kafka's narrative strike a universal chord within us all.

Kafka's distinctive writing style is intimately linked to his personal history. His father's authoritarian attitude causes a lasting impact on their relationship, leaving Kafka with enduring emotional distress from his family dynamics. This family influence profoundly shapes his creations, where characters always grapple with authoritarian and patriarchal pressures. Also, despite Kafka's literary talent, he pursued a law degree and later worked in the insurance industry, diverting his attention from writing to mundane and time-consuming tasks. Throughout his life, Kafka wrestled with the frustrations stemming from his work, familial trauma, and personal relationships. His works often depict characters burdened by anxieties and alienation, reflecting the struggles felt by many individuals in the past century. Kafka's narratives underscore universal human dilemmas, emphasizing the shared challenges we all encounter.

Even though Franz Kafka wrote his works in the last century, his writings continue to influence contemporary readers with their enduring relevance. For those grappling with feelings of disorientation and anxiety, reading Kafka's fiction offers an opportunity for them to rethink their work, relationships, life and existence. In the words of Kafka, it is important to engage with literature that compels readers to confront uncomfortable truths. As he said, “We ought to read only the kind of books that wound or stab us. If the book we're reading doesn't wake us up with a blow to the head, what are we reading for?”

The Metamorphosis

▸ The Metamorphosis

Author:Franz Kafka

Publishing House:Bantam Dell

Year of Publication:1986