O título alternativo desta deliciosa obra de Henrique Senna Fernandes poderia ser a “A ascensão, queda e redenção de um ignóbil folião de Macau”.A obra de Fernandes, o mais renomeado escritor macaense, lê-se quase como um conto moral dos riscos da má-educação e excessivo mimo de crianças. A escrita de Fernandes assemelha-se a um Eça de Queiroz, se este usasse eximiamente o patuá, o dialecto local que tão bem se ajusta a este conto trágico-cómico. Mas em vez de Carlos da Maia temos as crónicas da transformação de Francisco “Chico” Frontaria, menino de boas famílias e auto-intitulado pândego, em bobo da festa e Chico-Pe-Fedê, o miserável parvo da aldeia de Macau.
Um dos grandes talentos de Fernandes é sem dúvida a sua capacidade de estabelecer o contraste entre a cidade mui cristã e conservadora do “Nome de Deus de Macau” e a pândega e carnaval, que os seus habitantes “cristãos” mui apreciam também. Oferece também uma visão de nuance de um escritor que conhece bem as diferentes comunidades que tentam coexistir em harmonia em Macau.
A mestria e domínio do autor no uso de patuá providencia também um colorido local com o próprio a admitir no prefácio que o dialecto local que este domina é “mais doce e sugestivo” ouvido do que lido, sendo impossível traduzir em linguagem escrita todas as suas nuances e inflexões de sotaque, pronúncia e entoação.
Mesmo assim, a miríade de expressões deliciosas de patuá ajuda um leitor português menos acostumado ao dialecto a apreciar o seu quotidiano e maravilhoso efeito cómico e satírico neste livro. Completo com um glossário de expressões como malinguar (difamar) e chacha-velha (mulher velha), em conjunto com aliterações de cantonês como fan-tim (restaurante) e cha-koi (casa de chá), um leitor não familiarizado pode ganhar um conhecimento mais profundo com o ambiente cultural único da cidade.
Qualquer actual residente da actual selva urbana de Macau vai sem dúvida também apreciar este olhar histórico a uma cidade tão diferente em que personagens se deslocam ao Jardim de São Francisco perto da Avenida da Praia Grande para apreciar a maresia, e em que a Areia Preta está polvilhada de chácaras e hortas em que se caçam aves selvagens.
Parte de uma reedição do Instituto Cultural da obra completa do que é indiscutivelmente o mais distinto autor macaense em português, o grande volume da obra esconde uma leitura que se consome vorazmente como um bom porco balichão-tamarindo.
Mas comecemos pelo princípio, centrada no início do século XX, a história começa por apresentar a história da prestigiada família Frontaria conhecida pelos seus lorcheiros, destemidos capitães das também muito macaenses lorchas, uma fusão entre construções navais europeias e chinesas. Essa muito honrada linhagem desembarca em Francisco da Mota Frontaria, órfão criado e excessivamente mimado pela tia, Títi Bita. Inteligente, mas “avesso aos estudos” já aos 13 anos, Francisco passou a demonstrar uma “grande tendência para a boémia” que seria o seu grande talento e perdição.
A morte da tia deixar-lhe-ia com uma fortuna e mansão, que depressa esbanjou em mulheres e folia, tendo crescido “irresponsável, preguiçoso e egoísta” enquanto adulado por um grupo de “parasitas bajuladores” que o sugaram até ao tutano.
O livro detalha as desventuras deste incontestável rei do Carnaval, os seus muitos casos amorosos e travessuras diversas, incluindo a “suprema proeza” final que leva Francisco a ser expulso da "cidade cristã". Numa tentativa de brincadeira suprema, o nosso “herói” pede em casamento uma das três filhas solteiras do Sr. Saturnino com o único propósito de saborear o “excelente vinho do porto” que este oferecia aos pretendentes. No dia do casamento planeado, Francisco encerra sua “memorável peça de humor teatral” ao aparecer como uma figura carnavalesca, claramente desonrando o pai, a noiva, e restante família e convidados.
A proeza seria a última gota que levaria Francisco Frontaria a ser abandonado pelo tio severo, pelos supostos amigos, as muitas namoradas que precisava e descer para um ciclo de autodestruição em que, desempregado, acaba como pobre figura vivendo num cubículo infecto do porto interior e abusado e dependente de A-Tai, mulherona de modos grosseiros, que lhe fornecia uns poucos tostões e muita porrada à mistura.
O nosso autor tem o cuidado de elaborar que, apesar de inconsciente, o nosso protagonista possui capacidades redentoras de empatia e bondade, que permanecem infelizmente atrofiados pela sua completa inaptidão de manter uma vida honesta e impoluta.
A certa altura, desesperado por dinheiro, Francisco ajuda um rico comerciante chinês a “comprar” a filha menor de um pobre pescador da Ilha Verde como concubina. A conclusão de tão ignóbil missão levaria lágrimas aos olhos de Chico, coberto de remorso.
A descida aos infernos de Chico ficaria completa quando, atacado por uma estranha maleita, fica com os pés cobertos de bolhas e pústulas, certo acossado por uma comichão ardente e passando a trazer um cheiro nauseabundo por onde passa, que resultaria no seu novo nome Chico-Pe-Fedê. Expulso do seu cubículo pela sua única protectora, Chico acaba na rua, atormentado pelo frio, fome e por esta estranha maleita de pés que nada parece curar.
A este ponto o nosso conto moral atinge o início da curva da redenção, mudando o foco para a segunda protagonista da história, Victorina. O leitor passa a conhecer a Victorina Padilla, outra personagem trágica de contornos de gata-borralheira, filha de Hipólito Vidal, outro menino de boas famílias que acaba vítima de uma “cabeçada” inconsequente que o prende para sempre à família Padilla, ao engravidar uma das filhas de um curandeiro espanhol irascível e especialista no trato de doenças sexualmente transmissíveis. Maltratada pela família e abandonada pelo pai, também ele abandonado pela família após a desonra, seguimos o trajecto de Victorina, mulher desprovida de encantos físicos, mas com inegável talento de enfermeira.
Como não podia deixar de ser, Victorina é também uma vítima passada das brincadeiras de Chico. Mulher “triste, vesga, e condenada a ficar solteira” que acaba apelidada Varapau-de-Osso após ter a “ousadia” de recusar-lhe uma dança que este pretendia em jeito jocoso.
Estas duas figuras “homericamente” trágicas acabam novamente por chocar numa noite fria e chuvosa, com Victorina a acabar por acolher Chico-Pe-Fedê e conseguindo miraculosamente recuperar a saúde e humanidade do nosso herói, apesar do risco para a sua reputação.
Comovido pela ajuda, Chico não consegue deixar de cair em amor profundo pela sua antiga vítima e, com a sua ajuda, completa a sua redenção social na sociedade macaense. Como nos bons contos, tudo está bem quando acaba bem e Chico acaba como “marido exemplar, pai extremoso” agora “asseado e bem-posto” na sua nova casa do Lilau. Chico acaba a retomar o seu papel activo no Carnaval, agora sem as partidas ignóbeis.