Blake Crouch é um escritor norte-americano que aborda assuntos às vezes complexos, mas sempre muito cativantes. Assim que começamos a folhear as primeiras páginas, é difícil poisar os seus livros. Tem uma escrita inovadora com enredos sempre inesperados. Há sempre voltas e reviravoltas na acção das histórias, e até nas moralidades de cada personagem.
Recursion, o penúltimo livro do autor, que será brevemente transformado numa série de televisão, é a minha sugestão de leitura, que recomendo como apropriada para quem quer desligar do stress da vida diária. Este livro é mais uma das provas (das quais nesta fase da carreira, ele já não necessita) de que ele escreve ficção científica de forma única e arrebatadora. Conta-nos o percurso de duas personagens: Barry Sutton, um polícia de Nova Iorque; e, Helena Smith, uma neurocientista de certo modo responsável pelo enredo (às vezes mais que o próprio autor). No entanto, o autor diz que este foi um dos livros mais pessoais que escreveu. Sem explicar exactamente o que quer dizer com isto, o autor leva-nos a pensar que muitas das formas de reagir ou de pensar do Barry são um espelho da sua própria identidade.
Quando começamos a ler o livro, é muito fácil ver em Barry, um personagem saturado da vida, cansado, desiludido, mal-tratado pelas circunstâncias que o rodeiam, e com uma enorme dor provocada pela perda da filha adolescente alguns anos antes. Tal como o autor, o personagem passa pelo desgaste do fim de uma relação, divorciando-se da esposa, e é fácil sentir a tristeza inerente. É bem possível que a construção deste personagem tenha funcionado como um processo de catarse para o autor.
A outra personagem, Helena, é uma cientista que, tal como é normal neste ramo de actividade, não tem um emprego cujo trabalho funciona vinte-e-quatro sobre vinte-e-quatro horas. Mesmo quando não estão no trabalho, a ciência está sempre lá, quase como uma infecção sistémica e sem cura. O equilíbrio saudável entre trabalho e vida pessoal é uma luta constante. E é essa luta que junto com a busca de um propósito ensombram a vida de Helena. Muitas vezes, o trabalho não lhe deixa espaço para mais nada, torna-se uma obsessão, e é-lhe difícil manter os relacionamentos que dificilmente sobrevivem no meio desta batalha. Helena é por isso uma mulher solitária.
O seu objectivo profissional, e até pessoal, é mapear as memórias humanas de forma a poder implantá-las no caso de estas serem perdidas. A motivação inicial da sua investigação é a mãe, que sofre de Alzheimer. Esta é a justificação para a dedicação completa de Helena aos seus estudos. Graças ao financiamento de um milionário, Helena consegue um avanço significativo: desenvolve uma tecnologia que muda o mundo, a realidade, as memórias, as perspectivas e as lógicas. Para melhor? Só conseguimos chegar perto de uma eventual resposta a esta pergunta, lendo o livro.
Na história, a vida parece desenrolar-se em várias vidas e os caminhos de Helena cruzam-se com os de Barry. São várias linhas temporais que o autor junta quase como quem faz croché com as palavras. Desde esse cruzamento, passam a fazer ciclos de vida juntos.
É durante esses ciclos que o autor nos vai explicando um pouco sobre como funciona a nossa memória e a actividade neuronal. Há alguma discussão científica, mas nada que não esteja bem explicado e não seja fácil de entender. E é como o autor escreve: “A memória é um filtro entre nós e a realidade. Na altura em que nos damos conta que estamos a experimentar algo, isso já passou. A realidade é uma memória”. Estas noções e conceitos abrem inúmeras possibilidades e os ciclos da Helena e do Barry tornam-se fantásticos. O universo e a nossa percepção dele podem ser coisas completamente distintas e diferentes. E é o nosso cérebro que tolda a realidade que nos rodeia e que faz com que o que eu vejo, sinto, cheiro, oiço e experimento seja só meu e muito provavelmente, diferente do que qualquer outra pessoa vê, sente, ouve e experimenta.
Durante os vários ciclos de Helena e Barry, o mundo inteiro vai mudando, tal como eles. Mas poucos são os que, na história, entendem o que está a acontecer. De início, os efeitos da tecnologia que Helena desenvolveu, parecem-se com uma doença, uma epidemia ou até uma pandemia (bem apropriado para a altura em que este livro foi publicado). Nesta doença, designada de síndrome das falsas memórias, as vítimas enlouquecem com memórias de vidas que não viveram. Depois, é nos explicado que há uma mistura entre o presente, o passado, e o futuro. Parece que está tudo a acontecer ao mesmo tempo e é nesta altura que nós, leitores, começamos a virar as páginas ainda mais rápido. Quando interrompemos a leitura, é apenas para nos questionarmos “e se for assim?”, “e se isto for possível?”. No meio de toda esta acção sentimos uma nostalgia imensa, e alguma necessidade de agarrar o nosso tempo, agora (como se fosse possível...).
Quando, pelo meio do percurso de Barry e Helena, percebemos que parte dos seus ciclos são definidos por Helena, esperamos que ela altere o percurso da história de forma a facilitar a vida dos dois personagens. Mas nada é linear. E o que o autor nos lembra é que a existência não está pre-definida, não é algo que consigamos alterar para evitar as partes dolorosas, e são essas que muitas vezes dão significado à nossa vida. São os momentos maus que fazem os bons ainda melhor.
Esta não é uma história que depois de lida se esquece facilmente. Não esperem um texto de literatura formal ou um clássico de vocabulário complexo. Mas contem com uma escrita inteligente e cativante que se lê como se estivéssemos a ver um filme de acção, daqueles em que nos agarramos à cadeira e que até nos deixam com dificuldade em respirar. Talvez não seja do agrado de todos, mas depois de se começar a ler é difícil poisar o livro sem ler a folha seguinte.
Blake Crouch leva-nos regularmente a questionar se as nossas descobertas tecnológicas são boas ou más. É esta dualidade que ele explora, em realidades hipotéticas, em muitos dos seus livros, trazendo aspectos de uma humanidade extremamente destrutiva e ao mesmo tempo enternecedora e compassiva.
Blake tem várias obras já bem conhecidas, tendo várias delas sido adaptadas para TV: A triologia de Wayward Pines. Dark Matter é um outro livro seu, publicado em 2016 que está agora a ser filmado, desde Outubro de 2022, na forma de série televisiva, e que se espera que seja mais um sucesso. Claro que ler os livros, como concordará qualquer leitor, é sempre mais interessante que qualquer adaptação televisiva ou cinematográfica. Depois de Recursion, Blake escreveu também Upgrade, o seu último livro, que foca em alterações e edições genéticas, tópico cada vez mais actual e relevante nos nossos dias, e apresenta-nos outra forma em como a ciência pode causar grandes impactos no nosso mundo. Deste ainda não li mais do que a contra-capa, mas já está na minha pilha da mesinha de cabeceira e em breve poderei falar-vos sobre ele.