“Nascemos no saber. Alguém como eu, nascido na burguesia provinciana, não foi criado, amamentado com saber? Mesmo antes da escola primária, estávamos imersos num meio, num sistema em que a regra de existência, a regra da promoção, eram saber um bocado mais, ser um aluno dos melhores na aula. Desde pequeninos, estávamos em competição. Sempre banhei, patinhei no saber. É da sorte? Gostaria de tentar desembaraçar-me disso. Mas como não é possível, vou tentar encontrar outras vias, outras diagonais, dar a volta... Encontrar algo que não faça parte do saber. Mas que mereça fazer parte dele.”
—Michel Foucault em entrevista a Jacques Chancel em 1975.
Filósofo francês nascido em 1926 e falecido em 1984, Michel Foucault, cujo pensamento foi primeiro associado ao estruturalismo, é hoje considerado um dos maiores pensadores do pós-modernismo. Depois de ter ensinado na universidade experimental “Le Centre Universitaire de Vincennes”, foi, de 1970 a 1984, titular de uma cátedra no Collège de France, intitulada “História dos Sistemas de Pensamento”. Militante político, lutou igualmente pela defesa dos direitos dos trabalhadores imigrantes e dos prisioneiros.
Publicado em 1969 pela Gallimard, o livro A Arqueologia do Saber de Foucault inscreve-se na continuidade das suas obras precedentes, “As Palavras e as Coisas” e “A História da Loucura”. Em comparação com outros livros seus, A Arqueologia do Saber tem sido relativamente pouco comentado e isso só faz com que o desafio de comentar esta obra fique ainda mais atraente.
“Os meus livros foram os estudos de história, mas não o trabalho de historiador.”
— Michel Foucault citado por Gilles Deleuze durante um dos seus cursos sobre o assunto em 1985.
Se os livros de história nos acostumaram a alguma coisa, é bem à abordagem clássica onde o “historiador”, ao longo das suas investigações, faz falar os vestígios que descobre. Numa abordagem histórica, estes vestígios vistos como objectos congelados que estariam por baixo da terra como que à espera do “historiador”, este sujeito que irá fazê-los falar ao dar-lhes e mesmo ao impor-lhes um significado, um saber, ou seja, a verdade, que diremos deles.
Esta descrição do trabalho do “historiador” parece corresponder exactamente ao método do “arqueólogo”. No título do seu livro, e é aqui que se exige muita prudência, se Foucault usa a palavra arqueologia, é numa direcção completamente oposta. Como o filósofo diz na entrevista com Jacques Chancel em 1969: “Arqueologia é uma palavra vilã.” Apesar do aspecto histórico que a maioria dos seus livros pode assumir, Foucault, A Arqueologia do Saber, tem, mais uma vez, o cuidado de não agir como “historiador”.
Neste livro, que o autor divide em cinco partes (“Introdução”, “As Regularidades Discursivas”, “O Enunciado e o Arquivo”, “A Descrição Arqueológica” e “Conclusão”), Foucault desenrola a metodologia da sua abordagem arqueológica, que tanto se acautela de não tomar os vestígios históricos como objectos imóveis e inertes, como de não considerar o “historiador” como o sujeito que atribui significado aos vestígios.
A Arqueologia do Saber, o saber histórico não se baseia mais nessa relação objecto-sujeito que os livros de história fizeram e às vezes ainda fazem. Foucault questiona a relação entre os saberes históricos enquanto enunciados ou discursos e os vestígios ou factos históricos dos quais estes saberes históricos falam. Por outras palavras, nesse livro, é a própria formação dos saberes históricos que é analisada. Como nas suas obras precedentes, Foucault não se contenta em fazer uma história das mentalidades ou comportamentos de uma época.
Adicionalmente, e num trabalho que se aproxima mais de um filósofo do que de um “historiador” - Foucault propõe-se mostrar que a sua metodologia consiste em descobrir as condições que, na cada época, permitiram tanto a formação de mentalidades e comportamentos como os “historiadores” viam a história, os seus enunciados e os seus discursos erigiram nos saberes históricos na base dos vestígios e dos factos que eles souberam fazer falar. Ao falar das suas críticas às instituições sociais, das suas teorias gerais sobre o poder e também dos seus comentários sobre a psiquiatria - para citar apenas alguns dos seus temas mais recorrentes - os diferentes textos de Michel Foucault foram ficando cada vez mais complexos.
Os seus escritos podem parecer de difícil acesso, mas o seu objectivo foi voltar a dar a vida a um saber académico muitas vezes julgado, na sua época, como demasiado rígido ou sem vitalidade. Nascido na burguesia provinciana, Foucault cresceu, nas suas próprias palavras, “amamentado com saber”. No entanto, ele nunca considerou isso como algo bom. Ao contrário, é dessa concepção, desse saber burguês, que ele tentou desembaraçar-se durante toda a sua vida.
Foucault, para além de ser um grande autor dos seus tempos e de hoje, era igualmente uma personagem pública. Teve sempre cuidado em referir “no ocidente” ou “na civilização ocidental”, ao falar da sua parte do mundo. Esta simples atitude contrasta com o comportamento que observamos na bolha intelectual da Europa central onde, por vezes, se assume que a visão ocidental é válida para todo o mundo.
Ouvi-lo, nas suas inúmeras entrevistas, a falar de uma maneira sempre tão simples, tão viva, tão adequada e tão próxima do seu público, e onde uma coisa se torna evidente: Michel Foucault foi um homem profundamente da esquerda e empenhado a dar um lugar no reino do saber a todas aquelas vozes, até então julgadas não terem possibilidade de entrar nele.
Jacques Chancel (1928-2014), autor do incontornável programa “Radioscopie” para o rádio francês France Inter, fez mesmo um trabalho eminente sobre Foucault tendo mostrado ao público um filósofo com humor e autenticidade quando confrontado com as mais simples questões do jornalista gálico.
Este homem de palavras e de acções lutou durante toda a sua vida, tanto por meio de seus escritos, quanto pelo seu empenho político pelos mais desprovidos e desfavorecidos, denunciando os mecanismos de poder relacionados com a produção e partilha do conhecimento, o que até então não tinha sido analisado e discutido .
Uma nota adicional ao título A Arqueologia do Saber
Dado que estamos a escrever sobre Foucault e A Arqueologia do Saber numa revista de Macau, território no qual muitas línguas coexistem, depara-se-nos uma excelente oportunidade para analisar a etimologia do título do livro em causa em várias línguas.
O título português, A Arqueologia do Saber, como a língua portuguesa se aproxima do seu homólogo francês, transmite (quase) a mesma ideia do título na língua original, como acontece com o título alemão: o verbo substantivado “Saber”.
Já no título inglês ou polaco, com as diferenças que existem face à língua francesa, é usado o substantivo “knowledge” ou “wiedza” (conhecimento).
Os termos, a “arqueologia” e “saber” (enquanto sinónimo de conhecimento), são conceitos de origem ocidental e que foram integrados nas línguas e culturas do mundo confucianista há cerca de um século, principalmente através do japonês durante a modernização ou ocidentalização do Japão. 知識 (conhecimento em chinês), e as suas exactas equivalências em coreano, 지식 e, em vietnamita, tri thức, foram originados numa Ásia oriental onde floresciam movimentos de regeneração com suporte no conhecimento ocidental.
Sendo um empréstimo linguístico do chinês clássico e composto por dois caracteres chineses, tanto 知 como 識 têm uma grande flexibilidade gramatical na sua origem. Hoje, esta palavra composta por estes dois caracteres sino-asiáticos como uma palavra única mostra a sua ascendência linguística: um conceito de origem ocidental que categoriza e significa “à europeia”.
Esta adaptação cultural aconteceu provavelmente primeiro em língua japonesa. No entanto, é a única língua do mundo confucianista que volta a procurar, a fazer uma “arqueologia” à sua própria maneira de “saber”, palavra com um só caracter 知, um pictograma que pode ser usado tanto substantivo como verbo, o que coincide com o caso do título original francês, “Savoir”, que partilha a mesma etimologia latina da palavra portuguesa “Saber”.