(…) não me parece que o tema seja a idealização do amor, pois esse amor jamais se vislumbra. “A verdadeira atração de Gustav Aschenbach mostra ser pela beleza e perfeição do menino, o que fica evidente para o leitor, dentre outros motivos, na medida em que Tadzio é apresentado como “o belo”. Inclino-me ainda muito mais para a interpretação narcísica de alguém, um puro esteta, que sente que justamente a juventude e a beleza já se ausentaram e entrou num processo imparável de decadência. Há uma luta em Aschenbach para se manter jovem e atractivo, mas é essencialmente para si. “Rosenfeld declara que “Aschenbach vê no jovem Tadzio o reflexo temporal da beleza eterna, do ideal sempre perseguido e de tal modo irresistível na sua encarnação que se acha moralmente desarmado diante da imagem perfeita”. Os temas centrais são portanto, para mim, o mito de narciso, o belo do Fedro e o Fausto, no sentido agora em que o pacto é com o demónio que habita em um Aschenbach envelhecido e doente.
Thomas Mann que ganhou o prémio Nobel da literatura em 1929 é considerado, penso que com alguma razão, o maior escritor alemão do século XX e um dos maiores da Europa. Aceita-se, até porque Hermam Hesse, prémio Nobel como ele, e que poderia, relativamente à língua alemã, discutir-lhe o título não produziu obras com a grandiosidade de A Montanha Mágica ou os Buddenbroch e Kafka porque foi afinal cidadão de Praga, checo, no fim de contas, embora escritor de língua alemã também. E outros de elevadíssima craveira como Musil ou Broch, eram austríacos. Thomas Mann, nasceu em 1875 na cidade de Lubeck de pai alemão e mãe brasileira e faleceu em Zurique no ano de 1955. De uma obra notável e vasta destaco o que considero as suas obras primas: Os Buddenbrooks de 1901, A Morte em Veneza de 1912, A Montanha Mágica de 1924 e o Doutor Fausto de 1947.
A beleza, o modo como fascina e pode enfeitiçar, o elemento sublime que contém mas também o seu lado demoníaco é um tema antigo mas recorrente tanto na literatura como na reflexão filosófica. A procura serena ou exaltada do esteta, a tentação pecaminosa e até a submissão ou escravidão povoam grandes temas ocidentais sobre o poder atractivo do belo que pode representar elevação ou queda, paz ou perturbação. O belo pode ser soteriológico ou condenar em vez de salvar. Ele é muitas vezes coadjuvante da virtude ou o seu pior inimigo. É o desejo, o seu modo, o pathos, o seu controle, desde a moderação até à absoluta extirpação que protegem a virtude dos excessos desregrados, desmedidos e desordenados do desejo e da ubris. No Fedro já Sócrates chamava a atenção sobre os seus perigos e temores. E, contudo, como sabemos, na cultura antiga por via da sua kalocagathia ainda a ética e a estética se irmanavam ao serviço do bem. Mas o génio de Sócrates já vislumbrava o perigo em potência. E esses perigos são de vária ordem. Todos foram desenvolvidos mais tarde, conquanto se anunciem no diálogo platónico. Sócrates explicou a Fedro o perigo do “temor ardente que acomete o homem sensível quando os seus olhos vislumbram uma semelhança do belo eterno”, mas também o avisou para o seu contrário ao referir a incapacidade de veneração por parte do homem ímpio e vil, “incapaz de pensar o belo ao ver a sua imagem”.
Qualquer cidadão culto percebe os perigos narcísicos ou os fáusticos. Qualquer pessoa sabe que no auge da dominação o homem pode voltar-se para a adoração estética de ídolos e ilusões, sacrificando o bem e a decência moral. A beleza é uma arma de dois gumes. Eros anda perto de Tanathos como justamente na Morte em Veneza acontece; pois esta obra desenvolve o tema do fascínio mortal que a beleza física pode exercer. O que não me parece é que o eros desenvolvido na novela seja plenamente erótico no sentido da sua conotação sexual, mas antes o eros é intermutável com o belo, com a juventude e inimigo da fealdade que anda muito associada à velhice. Assim é, pelo menos no Fedro. E é a essa luz que faz sentido a tentativa de rejuvenescimento mal conseguido da parte do escritor Gustav Aschenbach.
No Fedro tanto a beleza como a bondade estão ao serviço da felicidade. É feliz o que alcança o Belo e igualmente feliz o que alcança o Bem. Mas em ambos os caso não saímos do plano espiritual e contemplativo.
Em minha opinião o tema da paixão platónica de Gustav von Aschenbach pelo jovem Tadzio e por maioria de razão o tema da homossexualidade masculina, mesmo se apenas platónica não constitui o tema central do livro a Morte em Veneza, mas antes e essencialmente o tema do belo em si, assexuado. Se Thomas Mann escolheu um efebo e não uma ninfa, como Lolita, só para dar um exemplo literário foi justamente para se proteger melhor da dimensão erótica, romanesca e inevitavelmente sexual e do estereótipo da “pedofilia”. O tema é apenas o belo quase nos mesmos termos em que é colocado por Sócrates no Fedro. Nem mesmo sei se há uma paixão platónica pelo jovem Tadzio, ou apenas essencialmente um deslumbramento, acompanhado de obsessão não controlada. Lembremo-nos que o escritor está doente, desiludido e de algum modo espera recuperar inspiração nesta viagem ao sul. Gustav von Aschenbach vem a morrer sem mesmo ter chegado a trocar uma palavra com Tadzio, quanto mais uma carícia.
Também e repito, não me parece que o tema seja a idealização do amor, pois esse amor jamais se vislumbra. “A verdadeira atração de Gustav Aschenbach mostra ser pela beleza e perfeição do menino, o que fica evidente para o leitor, dentre outros motivos, na medida em que Tadzio é apresentado como “o belo”. Inclino-me ainda muito mais para a interpretação narcísica de alguém, um puro esteta, que sente que justamente a juventude e a beleza já se ausentaram e entrou num processo imparável de decadência. Há uma luta em Aschenbach para se manter jovem e atractivo, mas é essencialmente para si. “Rosenfeld declara que “Aschenbach vê no jovem Tadzio o reflexo temporal da beleza eterna, do ideal sempre perseguido e de tal modo irresistível na sua encarnação que se acha moralmente desarmado diante da imagem perfeita”. Os temas centrais são portanto, para mim, o mito de narciso, o belo do Fedro e o Fausto, no sentido agora em que o pacto é com o demónio que habita em um Aschenbach envelhecido e doente. Talvez que o filme de Visconti, que escamoteia as duas primeiras partes da novela, para entrar imediatamente em Veneza e no encontro platónico de Tadzio com Aschenbach, o tema da homossexualidade seja sugerido, mas para mim nem mesmo aí. Eu vi primeiro o filme e só depois é que li o livro e nada mudou a minha opinião, intuição e certeza. Tanto o filme quanto a novela são dominados pela captura e êxtase da beleza. E não mais. Na novela, mais do que no filme, servindo a beleza para discutir os cânones estéticos que enformam a literatura e a arte. Se não fosse esta a verdadeira dimensão reflexiva e especulativa, ensaística mesmo da novela e até do filme, ambos seriam obras menores o que está nas antípodas do que acontece, pois estamos na presença de duas obras primas. Não há, nem na novela, nem no filme, apesar da inevitável importância do olhar o mínimo sinal de voyeurismo ou qualquer outro comércio com facilitismos eróticos. Ler a novela ou ver o filme com esses pressupostos desejantes redundará numa frustração absoluta. Ambas as obras são até de uma austeridade e severidade excessiva, para os tempos de hoje.
A cena em que a expressão ‘amo-te’ ocorre é precedida de uma consideração sobre a distância inalcançável da beleza mesmo pelas palavras. “A linguagem pode apenas louvar”. Acho que é tudo.