Histórias de Macau

Romances que mesclam elementos realistas e ficcionais são portas para a compreensão de lugares desconhecidos. Embora as personagens e os eventos sejam inventados, os cenários e o contexto de tais romances contêm uma certa verossimilhança. Por conseguinte, O Mundo de Suzie Wong constituiu uma ponte que permitiu aos estrangeiros familiarizarem-se com Hong Kong; por seu lado, A Trança Feiticeira de Henrique de Senna Fernandes permitiu também uma melhor compreensão da cidade oriental onde as culturas chinesa e portuguesa se encontram.

Macau sofreu uma transformação avassaladora na última década. Como descrevem os romancistas a nova cidade? Esta série apresenta romances chineses e estrangeiros de escritores sediados em Macau, a fim de familiarizar os leitores com a cidade através de um outro olhar.

Literatura do Jogo

A escrita de Yan Geling é magnífica. Ela consegue descrever a idade e a experiência de um jogador através de um baralho de cartas e o gesto inexpressivo de um jogador através da textura das roupas. A sua ilustração do odor corporal dos jogadores inquietos é tão palpável, que é como se o odor atravessasse o papel. Yan retrata o vício do jogo do qual os jogadores não são capazes de se livrar, escrevendo sobre vários métodos de jogo - apontando assim para um trabalho de pesquisa profunda antes da escrita do romance.

A protagonista é uma operadora de um junco do Interior da China. O seu antepassado desloca-se a um país estrangeiro, onde ganha uma grande soma de dinheiro, acabando por perder a fortuna da família durante a sua viagem de regresso a casa. Não obstante o seu ódio pelo jogo, a protagonista ganha a vida num casino de Macau, apaixonando-se por um escultor em ascensão que cede ao vício do jogo. A chave deste notável romance reside na sua caracterização das personagens - a operadora do junco retratada por Yan é tão impressionante quanto uma figura real.

Os leitores mais exigentes poderão não apreciar o facto de que 80% do enredo tem lugar no interior de casinos, sendo a paisagem de Macau excluída por completo da obra. No entanto, Yan revela imperceptivelmente as lacunas dos turistas que vêm a Macau apenas para jogar. O protagonista masculino acaba por se abster de jogar e a protagonista feminina anuncia que ambos podem, finalmente, desfrutar das manhãs, da aura dos mercados e da vida popular de Macau - não será esta precisamente a paisagem de Macau que o romance procura representar?

 

媽閣是座城

▸ 媽閣是座城

Autor:嚴歌苓

Editora:人民文學

Data de Publicação:2014

Realidade Social

De todos os romances cujo enredo têm lugar em Macau, a escrita de autores locais deveria permitir as reflexões mais fiéis sobre a realidade da cidade. Com Covardia, Tai Pei venceu a 3ª edição do Prémio de Melhor Novela de Macau. O livro ilustra, de modo abrangente, o tumulto da vida dos residentes: a subida do preço dos imóveis privados, o espaço reduzido das habitações sociais concedidas pelo Governo, o salário dos polícias de segurança pública, que chega a ser menor do que o salário dos profissionais de relações públicas dos casinos - para não falar dos esquecidos que vivem de modo miserável.

Covardia é uma história policial que descreve dois casos relacionados: a investigação de um caso de fogo posto após uma violação e assassinato expõe um caso de desmembramento, ocorrido vinte anos antes. Surpreendentemente, as vítimas, nos dois casos, são mãe e filha. O protagonista do romance é um inspector subestimado, o qual não foi capaz de resolver o mistério do assassinato da sua mãe no passado. Desta vez, ele está decidido a encontrar o assassino da filha, acabando, no entanto, por descobrir as actividades ilegais em que a polícia está envolvida.

Tai Pei, originalmente conhecido como Wong Chon Nin, é um jovem escritor nascido na década de 1970. Covardia, independentemente dos episódios nos casos de assassinato ou dos diálogos durante a investigação policial, apresenta o estilo de uma telenovela da TVB que nos acompanhou na juventude. A escrita de Tai Pei não iguala a de Yan Geling, autora 20 anos mais velha, mas, a nível da sua descrição realista da sociedade contemporânea, Tai Pei consegue definitivamente superar Yan, evocando nos leitores um sentido de identificação.

 

懦弱

▸ 懦弱

Autor:太皮

Editora:澳門日報

Data de Publicação:2014

Romance Épico

Embora o título evoque o jogo fan-tan, este romance apresenta a história de amor entre um protagonista escocês e uma protagonista russa em Macau. Escrito há cinco anos, o enredo tem lugar em Macau durante os anos 1920. Trata-se de um romance épico ambicioso que insere Macau na maré histórica do mundo, envolvendo eventos históricos como a Revolução de Outubro da Rússia, a Guerra Civil da China e a Segunda Guerra Sino-Japonesa.

O romance retrata a fuga da protagonista russa para Macau com a sua família, a fim de escapar à Revolução Bolchevique. Nesta cidade oriental, onde a China se mescla com o Ocidente, ela cria um forte laço com uma mulher portuguesa e apaixona-se por um agente de espionagem britânico. É uma época de agitação política - no início, o protagonista masculino procura o pai desaparecido da protagonista feminina na URSS; mais tarde, é a vez dela resgatar o marido de um campo de prisioneiros de guerra de Hong Kong.

Esta história patética não é inteiramente inventada. Nascido em Hong Kong, Julian Lees é de ascendência russo-britânica: naquela época, o seu bisavô emigrou para a China, a fim de escapar à Revolução de Outubro, mudando-se para Macau após o nascimento da mãe de Julian, em Xangai. Esta criou então raízes em Hong Kong, onde conheceu o seu marido britânico. Macau, um caldeirão (melting-pot) de culturas chinesa e ocidental, impulsiona a própria história de vida de Julian Lees, o que é magnificamente desenvolvido no seu romance.

The Fan Tan Players

▸ The Fan Tan Players

Autor:Julian Lees

Editora:Sandstone Press

Data de Publicação:2010

Ouro e Jade Esculpido

Este romance, o qual apresenta um retrato dos casinos de Macau, foi nomeado o Melhor Livro do Ano de 2014 pelo jornal The New York Times e pela revista The New Yorker. Enquanto Yan Geling se distingue na descrição do vício do jogo por parte do povo chinês, o escritor britânico Lawrence Osborne prima pelas suas representações da extravagância de Macau, incluindo os lustres e pinturas patentes nos casinos, no Clube Militar na Península de Macau e no Restaurante Fernando em Coloane.

O romance é protagonizado por um advogado britânico que desvia dinheiro no trabalho antes de fugir para Macau, onde personifica um nobre cavalheiro, jogando nos casinos de forma exuberante. Mais tarde, perde a fortuna e passa fome. Voltando a ganhar uma enorme quantia de dinheiro, é entrevistado por jornalistas. A superstição na mesa de jogo é o tema da sua demanda. O protagonista acaba por se apaixonar por uma call girl do Interior da China, com quem trava conhecimento numa sala VIP. Talvez em contraste com o pano de fundo deste cenário ricamente ornamentado, este amor sincero assume um cariz patético.

Talvez Lawrence Osborne não entenda muito de casinos chineses, pois em comparação com as centenas de milhões retratadas por Yan Geling, o protagonista deste livro luta apenas para ganhar dezenas de milhões, o que não pode deixar de nos fazer rir. Contudo, poderíamos dizer que o romancista estrangeiro valoriza mais o entretenimento e a diversão dos jogadores, em vez do dinheiro que se perde.

The Ballad of a Small Player: A Novel (Paperback)

▸ The Ballad of a Small Player: A Novel (Paperback)

Autor:Lawrence Osborne

Editora:Hogarth

Data de Publicação:2015

Sons e cores de Macau

Num livro de Ana Maria Amaro sobre Macau fomos descobrir uma história de Macau sobre um contador de histórias.

Ana Maria Amaro sabe que não há vida nem lugar sem memória e que não há memória sem aqueles que a constroem e a mantêm. Não é portanto por acaso que as curtas narrativas de Ana Maria Amaro comecem pela evocação pragmática mas ainda emotiva de A’Kong, o contador de Histórias. 

As narrativas desta figura com contornos misteriosos e míticos --- “Ninguém sabia o seu nome nem o nome da terra em que nascera” --- eram baseadas em narrativas tradicionais umas, imaginadas seguramente outras, mas em todas perpassava o sentido de um cimento que reforçava os valores da comunidade, através da exaltação dos seus elementos constitutivos: “a honestidade, o amor filial, a lealdade e a coragem”, entre outros. Um dia A’Kong deixou de ser visto no local em que habitualmente contava as suas histórias, justamente no dia que se seguiu à narrativa mais emblemática de todas, a história de um velho letrado que no contexto da dura guerra contra os japoneses se exilara e encontrara abrigo na Terra do Mar dos Lotus (designação antiga de Macau dada pelos chineses). 

Acontece que o velho letrado veio a perder nesse lugar a sua única filha de nome Iôk Lân que quer dizer Magnólia de Jade, ou seja, eruditamente, Donzela Chinesa. A filha representava mais do que simplesmente a sua descendência, ela representava também a sua memória, desde logo a memória da mulher que havia perdido durante a guerra, às mãos dos japoneses, mas ainda a imagem da Pátria, que forçadamente tivera que abandonar. Quando a sua única filha fugiu com um japonês de passagem pela Terra do Mar dos Lotos e o deixou só e sem uma palavra, o velho letrado, agora sim, provou o sabor do exílio, quer dizer o exílio verdadeiro e total. 

Simbolicamente, para mim, mais do que a perda da face, que já era em si um golpe duríssimo, o que o ancião chinês perdeu irreversivelmente foi a memória que o ligava à sua comunidade. Sem memória a vida de um indivíduo perde todo o significado e todo o sentido. Mas se a vida de A’Kong, o contador de Histórias era importante em si, era ainda mais importante para a comunidade, uma vez que nele se depositava um tempo que ultrapassava a duração da sua vida, um tempo onde residia a memória colectiva.

Aguarelas de Macau, 1960-1970, Cenas de Rua e Histórias de Vida

▸ Aguarelas de Macau, 1960-1970, Cenas de Rua e Histórias de Vida

Autor:Ana Maria Amaro

Data de Publicação:1998

Editor: CTMCDP e Fundação Macau