Num livro de Ana Maria Amaro sobre Macau fomos descobrir uma história de Macau sobre um contador de histórias.
Ana Maria Amaro sabe que não há vida nem lugar sem memória e que não há memória sem aqueles que a constroem e a mantêm. Não é portanto por acaso que as curtas narrativas de Ana Maria Amaro comecem pela evocação pragmática mas ainda emotiva de A’Kong, o contador de Histórias.
As narrativas desta figura com contornos misteriosos e míticos --- “Ninguém sabia o seu nome nem o nome da terra em que nascera” --- eram baseadas em narrativas tradicionais umas, imaginadas seguramente outras, mas em todas perpassava o sentido de um cimento que reforçava os valores da comunidade, através da exaltação dos seus elementos constitutivos: “a honestidade, o amor filial, a lealdade e a coragem”, entre outros. Um dia A’Kong deixou de ser visto no local em que habitualmente contava as suas histórias, justamente no dia que se seguiu à narrativa mais emblemática de todas, a história de um velho letrado que no contexto da dura guerra contra os japoneses se exilara e encontrara abrigo na Terra do Mar dos Lotus (designação antiga de Macau dada pelos chineses).
Acontece que o velho letrado veio a perder nesse lugar a sua única filha de nome Iôk Lân que quer dizer Magnólia de Jade, ou seja, eruditamente, Donzela Chinesa. A filha representava mais do que simplesmente a sua descendência, ela representava também a sua memória, desde logo a memória da mulher que havia perdido durante a guerra, às mãos dos japoneses, mas ainda a imagem da Pátria, que forçadamente tivera que abandonar. Quando a sua única filha fugiu com um japonês de passagem pela Terra do Mar dos Lotos e o deixou só e sem uma palavra, o velho letrado, agora sim, provou o sabor do exílio, quer dizer o exílio verdadeiro e total.
Simbolicamente, para mim, mais do que a perda da face, que já era em si um golpe duríssimo, o que o ancião chinês perdeu irreversivelmente foi a memória que o ligava à sua comunidade. Sem memória a vida de um indivíduo perde todo o significado e todo o sentido. Mas se a vida de A’Kong, o contador de Histórias era importante em si, era ainda mais importante para a comunidade, uma vez que nele se depositava um tempo que ultrapassava a duração da sua vida, um tempo onde residia a memória colectiva.