Não - inscrição, solidão e medo Manuel Afonso Costa

Poeta, ensaísta e professor universitário.

Não - inscrição, solidão e medo

José Gil é um filósofo e ensaísta português nascido em 1939, em Lourenço Marques, Moçambique. Em 1968 concluiu a licenciatura em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade da Sorbonne, em Paris. No ano seguinte fez um mestrado em Filosofia, com uma tese sobre a moral de Kant. Em 1982 concluiu o doutoramento com a tese Corpo, Espaço e Poder, editada em livro em 1988.  Em 1976 José Gil regressou a Portugal para ser adjunto do Secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica e cinco anos mais tarde instalou-se definitivamente em Portugal e passou a ser professor auxiliar convidado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Publicou diversos artigos e ensaios científicos em revistas e enciclopédias de todo o mundo, destacando-se nas suas preferências a reflexão sobre o corpo. Também elaborou alguns trabalhos sobre o poeta Fernando Pessoa.   Em 2004 publicou Portugal, Hoje. O Medo de Existir, a sua primeira obra escrita directamente em português, que rapidamente se tornou um sucesso de vendas. Em Janeiro de 2005 a conceituada revista francesa Le Nouvel Observateur integrou José Gil no grupo dos 25 grandes pensadores do mundo para o século XXI.
Em princípio, talvez a priori mesmo, seria tentado a opor uma imediata resistência à ideia do que a expressão “medo de existir” sugere, ou pelo menos pode sugerir. Mas uma vez lido o livro, devo dizer que compreendo a utilização do conceito e da expressão e com ambos me solidarizo.
Afinal a expressão não é, sobretudo, para interpretar de uma forma literal. Não há qualquer coisa como um inequívoco medo de existir enquanto facto, mas antes do mais um medo da inscrição e sobretudo um medo difuso enquanto sintoma, e por esse motivo um “medo entranhado, (…) incorporado, (…) um medo sem objecto (…) e no entanto ubíquo” . Toda esta obra de José Gil é aliás sobre sintomas e nessa perspectiva ela inscreve-se numa tradição antiga, que mergulha sobretudo na genealogia barroca. Por outro lado a inscrição na cultura barroca é incompleta na medida em que o livro de José Gil, não se desenvolve segundo os cânones de uma medicina, quer dizer, de uma vocação terapêutica, mas antes apenas numa perspectiva semiológica. 
É claro que o momento da análise semiológica é já determinante para a elaboração de uma solução terapêutica, uma vez que esta se começa a esboçar sob a rede articulada dos sintomas e acabará por se expor na superfície do quadro clínico uma vez constituído e terminado o momento da anamnese. Contudo o autor deixa as coisas no plano dos subentendidos inevitáveis e não passa à elaboração de uma grelha de soluções ou simples sugestões, como se depois do momento da elaboração do quadro clínico e do momento do diagnóstico o filósofo se desinteressasse da proposta de soluções, ou seja de um receituário. Como se, no fim de contas, esse outro momento não interessasse ao filósofo. Mas como disse, muitas vezes não é necessário explicitar as soluções uma vez que o acto de elaboração do diagnóstico põe tudo em evidência. Por exemplo, no texto de José Gil fica muito claro que a não-inscrição, enquanto mal maior dos portugueses e do país , está particularmente associada à inexistência de um verdadeiro espaço público; e que trabalhar no sentido de promover um espaço público, democrático, independente e livre representaria um duro golpe na não-inscrição estrutural dos portugueses. Este é apenas um exemplo, entre outros, onde sem propor soluções objectivamente, o filósofo acaba por fornecê-las implicitamente.    
A obra anda portanto à volta de um conceito axial, o conceito que atravessa transversalmente o texto e suporta toda a análise do autor relativamente aos elementos idiossincráticos da sociedade portuguesa, é o conceito de não-inscrição. É a não-inscrição que fundamenta, tudo o resto, e que em última instância rói nos seus alicerces a própria vida democrática dos portugueses e até o seu futuro. E o que é afinal a não-inscrição? É, desde logo, nas próprias palavras de José Gil, a produção de não acontecimentos, ou seja: “A não-inscrição é quando o acontecimento não acontece; e não acontece porque há uma espécie de buraco negro que suga o espaço público, entre o acontecimento e a vida privada do indivíduo” . José Gil dá como exemplo, a não-inscrição no domínio artístico: “No plano artístico e cultural, os portugueses não têm uma escala de valores para aferir o que é e o que não é importante. Eles vão buscar lá fora” . 
A não-inscrição exprime o permanente sentido do adiamento dos portugueses, associado sempre aos atavismos estruturais subordinados à hesitação, ao medo, a uma prudência excessiva e cautelosa, muitas vezes excessivamente cautelosa. Mas a verdade é que a inexistência de uma vida social e cultural dinâmica resulta numa falta de ideia de projecto. Como diz José Gil: “Não há apetência para a acção porque eu não vejo o efeito da minha acção, há uma série de barreiras que faz com que o tempo e a dimensão do futuro estejam quase ausentes do nosso presente” . Esta falta de câmaras de eco em que as acções, sobretudo intelectuais e artísticas, possam produzir um efeito, conduz ao isolamento, ao fechamento em relação aos outros. 
E se no tempo salazarista isso podia ser imputado à falta de liberdade, o mesmo argumento não pode ser usado agora. E a verdade é que havia mais tertúlia, mais polémicas, mais vida académica, mais recepções tanto da arte como da literatura nesse tempo salazarista do que agora, em que praticamente acabaram todos os fóruns de manutenção de uma vida intelectual e cultural com carácter social. Hoje tudo se passa mais ou menos em silêncio e em solidão. 
Um exemplo, que é significativo: Praticamente desapareceram as revistas de pensamento e cultura assim como os suplementos literários e culturais que animavam a  vida social. 
Hoje em dia, mais do que em qualquer outra época da vida portuguesa, todo os acontecimentos são, por assim dizer, esvaziados de substância, de conteúdo, restando deles a mera forma vazia e sem consequências. Para José Gil, a explicação reside na não-inscrição, porque o tempo da não-inscrição é o tempo da repetição e do adiamento permanente, e eu acrescentaria porque esse tempo é um tempo privado, prudente e mesquinho. Sendo que esta prudência, este acanhamento, este modo de viver para dentro e não para a partilha, a discussão e a crítica se subordina ao medo.  


//Filósofo português doutorado em França que foi recentemente considerado pela Revista Le Nouvel Observateur um dos 25 grandes filósofos a ter em conta para o século XXI. Fotógrafo: Carlos Vasconcelos

Palestras de Mestres de Cultura
http://www.icm.gov.mo/deippub/masters/2014/cn/?id=access1

Portugal, Hoje O Medo de Existir

▸ Portugal, Hoje O Medo de Existir

Autor:José Gil

Editora:Relógio D’Água

Data de Publicação:2005

Metamorfoses do Corpo

▸ Metamorfoses do Corpo

Autor:José Gil

Editora:A Regra do Jogo

Data de Publicação:1980

O Ensaísmo Trágico de Eduardo Lourenço

▸ O Ensaísmo Trágico de Eduardo Lourenço

Autor:José Gil e Fernando Catroga

Editora:Relógio D’Água

Data de Publicação:1996