Naquela terra sonâmbula... Patrícia Jin Xinyi

Patrícia é tradutora e investigadora das Literaturas de Língua Portuguesa. Lecciona no Departamento de Português da Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim (BFSU) desde 2012. Traduziu várias obras como Livro do Desassossego (co-tradução, 2022) de Fernando Pessoa, Plasticus maritimus - uma espécie invasora (2021) de Ana Pêgo e Isabel Minhós Martins, Arte de Música (2020) de Jorge de Sena, Terra Sonâmbula (2018) de Mia Couto, entre outros.

Naquela terra sonâmbula...

Quando o escritor Mia Couto veio ao mundo na cidade costeira da Beira, em 1955, Moçambique já suportava mais de 400 anos de domínio estrangeiro, e todos os aspectos da sociedade estavam profundamente imbuídos pelo jugo da colonização. Contudo, era também um país de intensa mestiçagem cultural e religiosa: 62 grupos étnicos falavam 28 línguas, espalhados por uma vasta extensão de mais de 800 mil km2; coexistiam as religiões tradicionais, o catolicismo, o islamismo, o protestantismo, entre outras crenças, com o animismo amplamente presente.

 

A compreensão do mundo real, naturalmente, não se restringia a uma única perspectiva. Durante a infância de Mia Couto, os seus pais, oriundos de Portugal, frequentemente narravam-lhe histórias da sua terra. Nessas narrativas, eles transfiguravam-se em crianças, o passado fundia-se com o presente, e os mortos retornavam à vida. Ademais, Mia Couto apercebia-se que os povos autóctones, como os Macuas, também relatavam histórias sobre a África, empregando as suas próprias vozes e modos singulares de percepcionar o mundo.

A literatura moçambicana começou a germinar na década de 1920, e o seu desenvolvimento está indissociavelmente ligado à luta anticolonialista, particularmente à guerra de independência liderada pela Frelimo, a partir dos anos 60. Em 1974, Mia Couto, membro da Frelimo, interrompeu os seus estudos universitários para se dedicar ao jornalismo. Embora tivesse começado a publicar poemas aos 14 anos e lançado a sua primeira colectânea de poesia, Raiz de Orvalho, em 1983, acabou por se afirmar como “um poeta que conta estórias”. Com as suas duas colectâneas de contos, Vozes Anoitecidas (1986) e Cada homem é uma raça (1990), estabeleceu-se rapidamente como um reputado contista, tanto em Moçambique como no estrangeiro. No entanto, foi com o romance Terra Sonâmbula que se consagrou como um dos mais eminentes escritores moçambicanos e de toda a literatura de língua portuguesa.

Neste romance, o jovem Muidinga e o velho Tuahir, na fuga desesperada da guerra, iniciam uma odisseia de sobrevivência. Um dia, Muidinga descobre uns cadernos de um morto chamado Kindzu, nos quais estão registadas as suas memórias de abandono de uma aldeia devastada pelas armas, o seu anseio em tornar-se guerreiro e a sua busca pelo filho desaparecido da sua amada. As narrativas nos cadernos transformam-se num bálsamo para os dois viajantes, acompanhando-os nessa jornada por um país cheio de cicatrizes. Nessa terra sonâmbula, as antigas civilizações africanas e a sociedade moderna dilacerada pela guerra são apresentadas de forma vívida e plena, num mundo onírico em constante fluxo, onde as palavras poéticas coexistem em perfeita harmonia com as ricas tradições de oralidade. Com a voz única de cada personagem, Mia Couto dissolve a fronteira entre o real e o irreal em Moçambique, proporcionando uma visão singular e profunda do seu país e da história nacional.

Terra Sonâmbula foi publicado em 1992, época em que Moçambique emergia de uma guerra civil que durara 16 anos. Foi uma das guerras civis mais sangrentas do continente africano no século XX, exacerbando ainda mais os estragos infligidos pelo colonialismo. Morreram cerca de um milhão de pessoas e cinco milhões ficaram deslocadas. A guerra envolveu a Frelimo, apoiada pelos soviéticos, contra a Renamo, partido de oposição apoiado pelos EUA e pela África do Sul, resultando em confrontos armados de extrema violência. Os “bandidos” que tanto aterrorizam Tuahir e Muidinga no livro são uma manifestação particular desse passado. Não se trata de ladrões comuns, mas jovens, até crianças, recrutados pela Renamo para controlar as zonas rurais. Treinados para serem máquinas de matar, participavam em ataques de guerrilha. Narizes e mãos eram cortados, sempre que se suspeitava que alguém colaborava com as forças governamentais. A própria Frelimo também orquestrava massacres que depois atribuía à Renamo. Invadia escolas para recrutar soldados adolescentes, pilhando e queimando tudo. As minas terrestres deixadas pela guerra mutilaram e mataram inúmeras pessoas, inspirando a fantasia de Muidinga sobre "uma pólvora suave, maneirosa, capaz de explodir os homens”, de quem “nascessem os infinitos homens que lhes estão por dentro”. Além do sofrimento humano, ocorreram também desastres naturais. A feroz inundação do início dos anos 80 é retratada no capítulo “O fazedor de rios”, e a fome severa que levou Muidinga a comer maquela, mandioca venenosa, resultando na sua amnésia, evoca a escassez alimentar generalizada no início dos anos 90. Enquanto a capital recebia ajuda internacional, os donativos eram desviados ou retidos nas províncias, levando os aldeões a rezar nas praias de Matimati, para os navios “se afundarem, suas cargas se espalharem e desaguarem nas mãos dos famintos”. Perante uma terra tão arrasada, Mia Couto afirma: “Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si.”

No entanto, a estreita correspondência com a realidade da guerra não basta para elucidar a singularidade deste livro. O romance começa com uma estrada morta pela guerra, mas, através dos sonhos, revela aos leitores um outro Moçambique, situado no lado oculto do mundo, onde o tempo linear é ora transmutado num círculo, à medida que os personagens caminham dia e noite, ora se desvanece nas teias de mitos e lendas. O espaço geográfico é dinâmico e integrado, onde os limites são constantemente desafiados e redefinidos: a terra é sonâmbula, porque enquanto os homens dormem num machimbombo queimado e imóvel, sabe aproximar-se do oceano a partir da selva interior; na história de Kindzu, “o chão deste mundo é o tecto de um mundo mais por baixo. E sucessivamente, até ao centro, onde mora o primeiro dos mortos”; e para Farida, a amada do Kindzu, “vivemos do outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do fruto. Tu estás do lado de fora da casca. […] Quando queremos que vocês, os da luz, venham até nós, espetamos uma semente no tecto do mundo.”

Essa quebra dos limites encontra-se omnipresente no romance. As fronteiras entre tempo e espaço, vida e morte, seres humanos e outras criaturas, até mesmo entre conceitos abstractos como medo e solidão e objectos concretos, são incessantemente desfeitas e reformuladas. Sendo um exímio mestre da linguagem literária, Mia Couto também transpõe essa metamorfose mágica para o próprio tecido linguístico da ficção. O neologismo coutiano constitui uma estratégia emblemática na Terra Sonâmbula, demonstrando-se particularmente na fusão de idiomas locais com o português, na derivação e na amálgama. Com quase 400 palavras inventadas no livro, entre as quais cerca de 200 são amálgamas, ou seja, palavras híbridas, tais como “luaminoso”, “miraginação”, “vagaluminoso”, “trapalhoso” e “brincriação”, Mia Couto criou um mundo extremamente polissémico, cuja forma de expressão, densamente carregada de sentidos, não só intensifica o efeito linguístico e descritivo, como também se revela como uma manifestação poética. Mais importante ainda, a ruptura das normas linguísticas estabelecidas e a abertura semântica proporcionada estão em perfeita sintonia com a intenção do autor de retratar a diversidade do mundo e da cultura moçambicana.

A literatura não é apenas um texto fixo, mas sim um acto de narrar dinâmico que capta múltiplas realidades. Em 2015, Mia Couto afirmou numa entrevista: “Somos feitos de histórias, assim como somos feitos de células”. Acredita que as vozes e narrativas dos tempos reverberam dentro de nós e a capacidade de contar histórias dos seres humanos, mais do que qualquer outra habilidade, nos permite perceber que fazemos parte de um legado vital. Nesse sentido, os relatos de vida e morte na Terra Sonâmbula, não apenas nos revelam formas de vida distintas, como também nos incitam a uma reflexão e contemplação mais profundas sobre a nossa própria existência.

Terra Sonâmbula

▸ Terra Sonâmbula

Autor:Mia Couto

Editora:Caminho

Data de Publicação:1992

The Illusory Pursuit of Love Irene Sam

Born in Macau and raised in the U.S. and France, Irene is fluent in six languages and contributes regularly to various publications in Hong Kong and Macau.

The Illusory Pursuit of Love

The Great Gatsby is an American novel published in the 1920s by the famous author F. Scott Fitzgerald. Some years ago the novel was made popular again when the movie came out with Leonardo DiCaprio playing the main character, Jay Gatsby. The novel tells the story of how a poor gentleman went from having nothing to becoming a millionaire and settling himself in upper class society just to impress a lady with whom he is madly in love.

 

Throughout the book, the story is told by narrator Nick Carraway, who happens to be Gatsby’s neighbour on Long Island near New York City in the United States. In the 1920s, Carraway is employed as a bond salesman and one day found himself having dinner with his wealthy cousin Daisy Buchanan. Married to Tom Buchanan, Daisy lives in the old money neighbourhood of East Egg. At the dinner, Carraway meets Jordan Baker, who says to him that Tom is having an affair outside his marriage.

On one occasion, Carraway gets formally invited to a party at Gatsby's mansion. At the party he does not know anyone but runs into Jordan Baker and all of a sudden, Jay Gatsby introduces himself to Carraway and recognises him as they have served in the military together in the war. Gatsby and Carraway eventually become friends.

Carraway sees Gatsby somehow having an illusory, cunning, yet reassuring aspect about him that makes one wonder how appearances can shape perceptions both towards oneself and another, “He had one of those rare smiles with a quality of eternal reassurance in it, that you may come across four or five times in life. It faced, or seemed to face, the whole external world for an instant and then concentrated on you with an irresistible prejudice in your favour. It understood you just as far as you wanted to be understood, believed in you as you would like to believe in yourself.”

At a meeting, Jordan Baker reveals to Carraway that Gatsby and Daisy Buchanan were once madly in love in the past but Gatsby was not wealthy. He was deployed overseas as a military officer. Daisy then married Tom, but Gatsby has been focused on acquiring wealth ever since. He has been throwing ostentatious parties at his mansion to gain the attention of Daisy with the hope of being with her again.

Finally, Carraway is able to set up a rendezvous for Gatsby to see Daisy. Upon visiting Gatsby’s ultra luxurious mansion, Daisy begins to fall back in love with Gatsby again. Having grown up in a wealthy family, Daisy is rather materialistic. This notion of being attached to wealth and status is evident throughout the novel.  At one point, Daisy cries when Gatsby shows her his garments which were sent from England. He goes on to point out that he has an individual who helps to shop for him.

Fitzgerald points out, through the narrator, that sometimes an individual is in love with an illusory aspect of another human being. In Gatsby’s case, he is in love with the idea of Daisy, not the Daisy in reality. Fitzgerald writes, “There must have been moments even that afternoon when Daisy tumbled short of his dreams — not through her own fault, but because of the colossal vitality of his illusion. It had gone beyond her, beyond everything. He had thrown himself into it with a creative passion, adding to it all the time, decking it out with every bright feather that drifted his way. No amount of fire or freshness can challenge what a man will store up in his ghostly heart.”

During Gatsby’s youth, he was unsatisfied with growing up in a farm and always wanted to venture out to see the world. After he falls in love with Daisy, circumstances do not allow him to be with her and since he acquires a fortune, he buys a mansion near where Daisy lives with her husband Tom. He can see a green light from home and it signifies where Daisy is physically, and psychologically speaking, we readers can understand what he is thinking by reading into what Carraway has to say, “Gatsby believed in the green light, the orgastic future that year by year recedes before us. It eluded us then, but that’s no matter — tomorrow we will run faster, stretch out our arms farther… And then one fine morning — so we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past.”

Gatsby not only wants to be with Daisy, but also yearns to go back in time to when they first met and rectify what had happened in the past. His obsession goes beyond what is physically possible and the illusory aspect of his love becomes more prevalent as the story goes on. Daisy also shares the same elements of artificiality. Fitzgerald writes, “Daisy was young and her artificial world was redolent of orchids and pleasant, cheerful snobbery and orchestras which set the rhythm of the year, summing up the sadness and suggestiveness of life in new tunes.”

Daisy is also someone who is in love with her world of illusion, supported by material wealth. During a confrontation between her, Tom, and Gatsby where she confesses her love for Gatsby, Tom points out that Gatsby earns his wealth by selling alcohol illegally. After just hearing such comments, Daisy immediately backs off showing her affection towards Gatsby in the most obvious manner. Towards the end of the novel when Gatsby passes away, Tom and Daisy avoid attending his funeral and heads out of town.

The Great Gatsby is a classic among many American novels because it dares to underline the superficiality of upper class society and how love has evolved in such a world where money and status come above true feelings, values or friendship. Every element of life can be swayed towards what is conducive to maintaining a fake facade. “There are only the pursued, the pursuing, the busy and the tired.”

The Great Gatsby

▸ The Great Gatsby

Autor:Fitzgerald, F. Scott

Editora:Picador

Data de Publicação:2013