Quando o escritor Mia Couto veio ao mundo na cidade costeira da Beira, em 1955, Moçambique já suportava mais de 400 anos de domínio estrangeiro, e todos os aspectos da sociedade estavam profundamente imbuídos pelo jugo da colonização. Contudo, era também um país de intensa mestiçagem cultural e religiosa: 62 grupos étnicos falavam 28 línguas, espalhados por uma vasta extensão de mais de 800 mil km2; coexistiam as religiões tradicionais, o catolicismo, o islamismo, o protestantismo, entre outras crenças, com o animismo amplamente presente.
A compreensão do mundo real, naturalmente, não se restringia a uma única perspectiva. Durante a infância de Mia Couto, os seus pais, oriundos de Portugal, frequentemente narravam-lhe histórias da sua terra. Nessas narrativas, eles transfiguravam-se em crianças, o passado fundia-se com o presente, e os mortos retornavam à vida. Ademais, Mia Couto apercebia-se que os povos autóctones, como os Macuas, também relatavam histórias sobre a África, empregando as suas próprias vozes e modos singulares de percepcionar o mundo.
A literatura moçambicana começou a germinar na década de 1920, e o seu desenvolvimento está indissociavelmente ligado à luta anticolonialista, particularmente à guerra de independência liderada pela Frelimo, a partir dos anos 60. Em 1974, Mia Couto, membro da Frelimo, interrompeu os seus estudos universitários para se dedicar ao jornalismo. Embora tivesse começado a publicar poemas aos 14 anos e lançado a sua primeira colectânea de poesia, Raiz de Orvalho, em 1983, acabou por se afirmar como “um poeta que conta estórias”. Com as suas duas colectâneas de contos, Vozes Anoitecidas (1986) e Cada homem é uma raça (1990), estabeleceu-se rapidamente como um reputado contista, tanto em Moçambique como no estrangeiro. No entanto, foi com o romance Terra Sonâmbula que se consagrou como um dos mais eminentes escritores moçambicanos e de toda a literatura de língua portuguesa.
Neste romance, o jovem Muidinga e o velho Tuahir, na fuga desesperada da guerra, iniciam uma odisseia de sobrevivência. Um dia, Muidinga descobre uns cadernos de um morto chamado Kindzu, nos quais estão registadas as suas memórias de abandono de uma aldeia devastada pelas armas, o seu anseio em tornar-se guerreiro e a sua busca pelo filho desaparecido da sua amada. As narrativas nos cadernos transformam-se num bálsamo para os dois viajantes, acompanhando-os nessa jornada por um país cheio de cicatrizes. Nessa terra sonâmbula, as antigas civilizações africanas e a sociedade moderna dilacerada pela guerra são apresentadas de forma vívida e plena, num mundo onírico em constante fluxo, onde as palavras poéticas coexistem em perfeita harmonia com as ricas tradições de oralidade. Com a voz única de cada personagem, Mia Couto dissolve a fronteira entre o real e o irreal em Moçambique, proporcionando uma visão singular e profunda do seu país e da história nacional.
Terra Sonâmbula foi publicado em 1992, época em que Moçambique emergia de uma guerra civil que durara 16 anos. Foi uma das guerras civis mais sangrentas do continente africano no século XX, exacerbando ainda mais os estragos infligidos pelo colonialismo. Morreram cerca de um milhão de pessoas e cinco milhões ficaram deslocadas. A guerra envolveu a Frelimo, apoiada pelos soviéticos, contra a Renamo, partido de oposição apoiado pelos EUA e pela África do Sul, resultando em confrontos armados de extrema violência. Os “bandidos” que tanto aterrorizam Tuahir e Muidinga no livro são uma manifestação particular desse passado. Não se trata de ladrões comuns, mas jovens, até crianças, recrutados pela Renamo para controlar as zonas rurais. Treinados para serem máquinas de matar, participavam em ataques de guerrilha. Narizes e mãos eram cortados, sempre que se suspeitava que alguém colaborava com as forças governamentais. A própria Frelimo também orquestrava massacres que depois atribuía à Renamo. Invadia escolas para recrutar soldados adolescentes, pilhando e queimando tudo. As minas terrestres deixadas pela guerra mutilaram e mataram inúmeras pessoas, inspirando a fantasia de Muidinga sobre "uma pólvora suave, maneirosa, capaz de explodir os homens”, de quem “nascessem os infinitos homens que lhes estão por dentro”. Além do sofrimento humano, ocorreram também desastres naturais. A feroz inundação do início dos anos 80 é retratada no capítulo “O fazedor de rios”, e a fome severa que levou Muidinga a comer maquela, mandioca venenosa, resultando na sua amnésia, evoca a escassez alimentar generalizada no início dos anos 90. Enquanto a capital recebia ajuda internacional, os donativos eram desviados ou retidos nas províncias, levando os aldeões a rezar nas praias de Matimati, para os navios “se afundarem, suas cargas se espalharem e desaguarem nas mãos dos famintos”. Perante uma terra tão arrasada, Mia Couto afirma: “Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si.”
No entanto, a estreita correspondência com a realidade da guerra não basta para elucidar a singularidade deste livro. O romance começa com uma estrada morta pela guerra, mas, através dos sonhos, revela aos leitores um outro Moçambique, situado no lado oculto do mundo, onde o tempo linear é ora transmutado num círculo, à medida que os personagens caminham dia e noite, ora se desvanece nas teias de mitos e lendas. O espaço geográfico é dinâmico e integrado, onde os limites são constantemente desafiados e redefinidos: a terra é sonâmbula, porque enquanto os homens dormem num machimbombo queimado e imóvel, sabe aproximar-se do oceano a partir da selva interior; na história de Kindzu, “o chão deste mundo é o tecto de um mundo mais por baixo. E sucessivamente, até ao centro, onde mora o primeiro dos mortos”; e para Farida, a amada do Kindzu, “vivemos do outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do fruto. Tu estás do lado de fora da casca. […] Quando queremos que vocês, os da luz, venham até nós, espetamos uma semente no tecto do mundo.”
Essa quebra dos limites encontra-se omnipresente no romance. As fronteiras entre tempo e espaço, vida e morte, seres humanos e outras criaturas, até mesmo entre conceitos abstractos como medo e solidão e objectos concretos, são incessantemente desfeitas e reformuladas. Sendo um exímio mestre da linguagem literária, Mia Couto também transpõe essa metamorfose mágica para o próprio tecido linguístico da ficção. O neologismo coutiano constitui uma estratégia emblemática na Terra Sonâmbula, demonstrando-se particularmente na fusão de idiomas locais com o português, na derivação e na amálgama. Com quase 400 palavras inventadas no livro, entre as quais cerca de 200 são amálgamas, ou seja, palavras híbridas, tais como “luaminoso”, “miraginação”, “vagaluminoso”, “trapalhoso” e “brincriação”, Mia Couto criou um mundo extremamente polissémico, cuja forma de expressão, densamente carregada de sentidos, não só intensifica o efeito linguístico e descritivo, como também se revela como uma manifestação poética. Mais importante ainda, a ruptura das normas linguísticas estabelecidas e a abertura semântica proporcionada estão em perfeita sintonia com a intenção do autor de retratar a diversidade do mundo e da cultura moçambicana.
A literatura não é apenas um texto fixo, mas sim um acto de narrar dinâmico que capta múltiplas realidades. Em 2015, Mia Couto afirmou numa entrevista: “Somos feitos de histórias, assim como somos feitos de células”. Acredita que as vozes e narrativas dos tempos reverberam dentro de nós e a capacidade de contar histórias dos seres humanos, mais do que qualquer outra habilidade, nos permite perceber que fazemos parte de um legado vital. Nesse sentido, os relatos de vida e morte na Terra Sonâmbula, não apenas nos revelam formas de vida distintas, como também nos incitam a uma reflexão e contemplação mais profundas sobre a nossa própria existência.