“À primeira vista, a sala que me fora atribuída nem parecia desconfortável. Tinha uma porta, uma cama, um sofá, um lavatório, uma janela com grades. Mas a porta estava fechada dia e noite, em cima da mesa não estava autorizado nenhum livro ou jornal, nenhuma folha de papel ou lápis, a janela dava para um muro corta-fogo. À minha volta, e mesmo à volta do meu corpo, tinha construído o vazio total. [...] Ficava-se irremediavelmente sozinho, com o próprio corpo e os quatro ou cinco objectos mudos, mesa, cama, janela, lavatório, [...]. Não havia nada para fazer, nada para ouvir, nada para ver, estava-se rodeado, por toda a parte, incessantemente, pelo vazio por um nada completamente desprovido de espaço e de tempo.”— Descrição própria da prisão domiciliária do Doutor B. n’Uma História de Xadrez de Stefan Zweig.
Entrámos o terceiro ano de viver com a pandemia e os novos conceitos sanitários que criados por essa já se tornaram uma parte da nossa quotidiana e, acredito que muitos de nós obtiveram esta experiência nos meses passados, mesmo estávamos bastante afectados. Estávamos confinados involuntariamente em casa, nos dormitórios, nos hotéis de quarentena, nas instalações de isolamento ou nos hospitais, sem dúvida que, às vezes, sentiríamos sozinhos e enfrentaríamos a solidão e o vazio, sobretudo, não podendo prever quando acabar a situação. Além disso, preocupamo-nos muito com a nossa vida e o futuro. Pareceu que a esperança já fugiria do nosso entender. Seja como for, voltámos a nova normalidade até ao momento. Para mim, foi um momento difícil e árduo, até estamos no século XXI, tendo acesso a todo o tipo de tecnologia. Podemos contactar com os familiares e amigos e realizar o teletrabalho em qualquer lugar. Digamos assim, desde que tenhamos um dispositivo que se possa fazer a ligação à Internet, o confinamento não confina nem consegue confinar tudo.
Em comparação com o século passado, como os protagonistas desta obra de Zweig, o que se enfrentaram talvez possa desencadear-nos novos aspectos.
O xadrez obviamente possui um estatuto excepcional nesta história. Para as personagens, as partidas, os lances, o tabuleiro e as peças são ferramentas, com que conseguem libertar-se das coisas que temem. Tenho de salientar que estou fascinado de que Zweig contou a história com êxito das duas figuras tão particulares mediante o xadrez, mas o que me fascina mais é a solidão e o vazio que os dois indivíduos encaram.
Dá-nos Stefan Zweig a conhecer no início desta obra à apresentação em pormenores, num ponto de vista de terceira pessoa, da primeira protagonista, Mirko Czentovic, o arrogante campeão mundial de xadrez. Explica-nos como um miúdo de campo, criado por um sacerdote, surgiu para ser descoberto com talento para o xadrez e tornar-se um membro do salão da fama aos vinte. A sua arrogância e alheamento, ou mais específico, o afastamento de outros jogadores e do público, constrói-se um muro, impedindo ninguém revelar a sua insegurança e o facto que seja “incapaz de escrever três frases correctas”. Além de um mestre de xadrez, Czentovic também é um especialista na criação da solidão e vazio para si próprio.
“Durante toda a minha vida, fascinaram-me todos os tipos de indivíduos monomaníacos, apaixonados por uma única ideia, pois, quanto mais alguém se limita, mais próximo fica do infinito; e, precisamente essas pessoas que parecem afastadas do mundo, à semelhança das térmitas, constroem com os seus materiais particulares uma miniatura extraordinária e única desse mesmo mundo.” — Stefan Zweig, Uma História de Xadrez
Devemos supor que Czentovic seria o protagonista desta história, mas não é verdade. Enfatizando o estatuto de classe baixa e pouca inteligência em tudo excepto no xadrez, mas Zweig nos traz outra personagem mais impactante e trágica.
O Doutor B., um descendente da família nobre da Áustria, foi preso pela Gestapo por ter tido uma ligação estreita com a família real e os mosteiros e administrar os seus patrimónios. Ele ficava num quarto de hotel em prisão domiciliária, sem julgamento, e não sabia quando seria libertado. O que o acompanhara inicialmente pode ler-se no excerto de abertura deste artigo. E descreve Zweig que o Doutor B. vivia-se como “um mergulhador numa campânula de vidro no oceano negro” e “já suspeita de que o cabo que o liga ao mundo exterior já está cortado que nunca será retirado das profundezas silentes”. Por uma coincidência, obteve um livro de xadrez e depois, passou dia e noite em pensar e jogar o xadrez com si próprio. O Doutor B. pensou que o xadrez era um salvador e actividade fugaz do vazio e solidão no quarto. Ficou encantado por ter corrido o risco de roubar o livro e finalmente encontrou algo em que podia confiar. Infelizmente, foi também o xadrez, que não se podia fugir de jogar, mesmo durante o seu sono, o que levou afinal às alucinações e comportamentos incontroláveis. Teve sorte que podia ser libertado da prisão domiciliária sob a ajuda do médico e encontra, a bordo do navio à Argentina, com Czentovic e o narrador desta história.
Não consigo imaginar o que o Doutor B. passou na sua prisão domiciliária, sobretudo não podia pedir ajudar a ninguém, nem o salvar. Mas ele próprio, além de Czentovic, é um outro extremo exemplo da frase proferida por Zweig. Ambos protagonistas, afastados do mundo, quer voluntariamente, quer involuntariamente, alcançam o seu limite.
No caso de Czentovic, opta voluntariamente por ficar sozinho, construindo um véu e obstruindo a demonstração da sua deselegância ao público. Consegue, assim, controlar tudo dentro da sua capacidade. A sua circunstância é semelhante ao que conhecemos como uma pessoa introvertida, de forma radical.
Para o Doutor B., a solidão e o vazio ocupam a sua mente e destroem-no. Não tem nenhumas opções, nem pode controlar nada — um cenário absolutamente passivo. Fica preso numa cadeia não só física, mas também psicológica. Na minha opinião, esta personagem ressoa o que encontrámos nos últimos meses, com certeza que não se pode comparar a nossa situação com a do Doutor B., que é uma extremidade impensável.
Vejamo-los agora de uma perspectiva mais longínqua. O que faz o narrador? Lemos a obra através dos olhos e ouvidos do narrador, em ponto de vista de primeira pessoa. Entendemos o que entende. Mesmo nunca se identifica nesta obra, o narrador dá a conhecer para os leitores as informações de base, apresenta-nos quem são o campeão mundial de xadrez e o fidalgo austríaco e, em forma pormenorizado, analisa-os. Podemos dizer que o narrador é Zweig próprio. Ademais, o narrador, assumindo um papel crítico no fim desta história, puxa o Doutor B. de cair no abismo.
Na realidade, temos o ponto de vista de primeira pessoa, como o do narrador desta obra, podemos ver e analisar por nós próprios, se descobrirmos alguém a sofrer da mesma do Doutor B., conseguiremos dar a nossa mão a ele? Ou até somos capazes de descobrir alguém que está a sofrer da solidão e vazio, dito de outro modo, saber quem são os “Doutores B.” ao redor de nós?
Ora, percebemos, mediante a obra de Zweig, definitivamente o impacto causado pela solidão e vazio e, indubitavelmente, procuramos resoluções e desejamos que os superar. Existe, todavia, alguém que tem dificuldade? Não nos esqueçamos que sempre, ao nosso lado, alguém a exigir ajuda. Sempre que a solidariedade seja uma resolução eficaz. Dizer a alguém que não está sozinho pode significar muito e haveria menos sofrimento.
Porventura o que estamos a enfrentar é dificuldade temporária. Se calhar não temos o poder de escolher o que enfrentamos, mas temos a responsabilidade de impedir que as coisas se tornem piores.