A PROBLEMÁTICA DA METALINGUAGEM NA AUTOBIOGRAFIA ARTÍSTICA Manuel Afonso Costa

Poeta, ensaísta e professor universitário.

A PROBLEMÁTICA DA METALINGUAGEM NA AUTOBIOGRAFIA ARTÍSTICA

  O meu primeiro objectivo na perspectiva de experimentar o registo biográfico de uma personalidade artística levou-me a pensar numa abordagem do tipo 'vida e obra', sem pretensões científicas ou sequer eruditas e em qualquer caso sem veleidades de originalidade que a natureza do trabalho desde logo pelo curto tempo de elaboração jamais permitiriam. Pela natureza do trabalho estava assim condenado a priori a uma abordagem sintética geral resultante de uma investigação sumária. Redundaria portanto no culto pouco estimulante da generalidade onde a ousadia ensaística estaria portanto condenada ao fracasso.

  Depois ocorreu-me a possibilidade de um exercício mais ousado através do recurso a Oscar Wilde e à sua obra O Retrato de Dorian Gray, uma vez que me parecia que sendo o retrato uma boa réplica figurativa da biografia haveria aqui lugar para um exercício de duplicidade artística em que de certo modo através desta obra concreta sobre uma obra de um outro artista no exercício de uma outra arte, o autor, isto é o artista (Oscar Wilde) que eu visaria, me pudesse abrir uma primeira porta de acesso à sua íntima biografia. Isto representaria já uma avanço hermenêutico relativo ao desiderato primitivo, demasiado positivista para o meu gosto. O projecto era sedutor mas ainda assim muito difícil de realizar uma vez que como disse e bem o artista abre apenas uma porta, quando a mim me convinha pela urgência da devassa que me abrisse todas as portas e todas as janelas da sua casa secreta.

  Penso que modestamente fiz a descoberta que se impunha ao inclinar a minha propensão para a obra de James Joyce, O Retrato do Artista Quando Jovem. Até porque por via de um pequeno pormenor que é contudo de uma relevância substantiva, o texto imediatamente se converteu na abertura para uma dupla exposição. É que a personagem central do Retrato vem a ser também uma das personagens centrais da obra maior de Joyce, o Ulisses, ou seja nem mais nem menos que o alterego do escritor, o incontornável Stephen Dedalus. Harold Bloom chega mesmo a considerar que é ainda Stephen Dedalus o narrador de alguns contos da colectânea, The Dubliners (em português, Gente de Dublin).

  Stephen Dedalus apresenta assim uma importância múltipla como chave de acesso à biografia de James Joyce, o facto de ser, como já disse, o alterego de Joyce, o facto de ser uma das metamorfoses narrativas ou mesmo da narratividade literária do autor, o de ser também uma personagem, neste caso, com a responsabilidade de ser o protagonista e finalmente o facto ainda de se assumir muitas vezes como uma espécie de anti-herói mostrando o lado obscuro e quem sabe recalcado do artista. É em qualquer dos casos uma personagem complexíssima e extremamente rica, homóloga, no mínimo, do universo complexo e perturbado do próprio James Joyce em todo o seu processo formativo. E por falar em processo formativo, é o momento de não esconder e muito menos negar que o carácter de bildungsroman de O Retrato do Artista Quando Jovem também me pareceu muito atraente e sugestivo pois as biografias devem começar pelos balbucios informes e quiçá ainda inconscientes do artista, justamente naquela fase da vida em que o ser estrebucha por se descobrir, por se encontrar com o seu genius ou se preferirmos por achar a sua subjectividade, encontro esse que é muitas vezes fatal e decisivo. É que, deixem-me dizê-lo já com clareza, num romance de iniciação, e este não foge à regra, pode aparecer com toda a nudez não apenas o processo de descoberta existencial mas ainda toda a panóplia de questões que há-de perseguir o artista ao longo da vida: temas, possibilidades retóricas, modulações narrativas, idiossincrasias estilísticas, modos e modelos expressivos, preocupações metafísicas e ideológicas, etc. Ora, é justamente isso que ocorre em O Retrato do Artista Quando Jovem do então jovem James Joyce. Muitos dos caminhos da sua obra e concomitantemente os caminhos de muitas das correntes do modernismo ao longo do século XX possuem aqui o seu momento inaugural. E para nosso gáudio mas também para nosso desespero encontram-se aqui em dédalo, isto é embrionários, no seio de um verdadeiro labirinto. Ou pensavam que o erudito e classicista James Joyce teria escolhido para personagem principal do seu primeiro romance a figura de Stephen Dedalus de modo acidental. Dedalus ou Dédalo possui uma riqueza multissémica que não foi alheia à escolha e onde eu ainda assim evidencio para além da ideia de labirinto, as ideias de enredo e de complexidade, sendo que ao mesmo tempo Dédalo pode ser capaz de sair das complicações em que se mete pois é também rico em artifícios e capacidades construtivas. Dédalo é um ser complexo e ambivalente como é toda a obra de Joyce.

  Comecemos, apesar do que foi dito até aqui pela biografia mais objectiva de James Joyce.

  James Joyce é natural de Dublin, onde veio ao mundo no dia 2 de fevereiro de 1882. Depois de uma vida acidentada, com constantes mudanças de cenário, veio a falecer em Zurique a 13 de janeiro de 1941, com a modesta idade de 59 anos. Sobretudo no plano formal é considerado um dos autores de maior relevância do século XX. James Augustine Aloysius Joyce iniciou a sua educação no Clongowes Wood College, um internato no Condado de Kildare. Mais tarde estudou no Belvedere College em 1893, na perspectiva de que este colégio jesuíta o conduzisse à Companhia de Jesus, o que não viria a acontecer até pela posição anti-católica que assumiu desde cedo. Finalmente estudou ainda desde 1898 na University College Dublin. A sua vida familiar conheceu altos e baixos, mais baixos que altos por causa da aditividade alcoólica de seu pai, John Joyce. Tudo leva a crer que o pai e o seu alcoolismo terão sido o modelo para o carácter de Simon Dedalus, pai de Stephen Dedalus, no Retrato do Artista Quando Jovem e no Ulisses, assim como do tio do narrador em diversos contos de os Dubliners. E estas obras com o Finnegans Wake constituem o essencial do cânone joyceano.

  Segundo Bakhtin (Julian Nazario) o Retrato do Artista Quando Jovem parece consistir, no plano da sua arquitectura estrutural, numa longa citação, embora apenas implícita, de A Divina Comédia, de Dante, quando narra os três momentos da vida do protagonista central, Stephen Dedalus: a sua infância, a sua adolescência e finalmente a sua maturidade, que corresponderiam respectivamente ao Inferno, Purgatório e Paraíso da genial obra de Dante. Esta, por sua vez glosa o cânone clássico da morte, descida ao inferno e resurreição. Seja ou não assim, a verdade é que a alegoria é possível e é apenas enquanto alegoria que nos interessa. O texto por essa via assume a valência de possuir a dimensão de uma metalinguagem que ao proceder à narrativa de uma história e ao proceder à narrativa de uma autobiografia, pelo facto de que o autobiografado é um artista e um artista experimental inovador e revolucionário, acabar por nos dar o laboratório alquímico da sua prometeica experiência. O próprio Joyce se referiu a isso quando ao referir-se à arte e ao artista ter colocado na boca de Stephen Dedalus o seguinte:

  "A personalidade do artista, no início um pranto, uma cadência, um estado de espírito, e depois uma narrativa fluida e ligeira, refinase no fim ao ponto de não existir mais, torna-se impessoal, por assim dizer. A imagem estética na forma dramática é a vida purificada através da imaginação humana e, por força desta, re-projetada. O mistério da estética como o da criação material, está consumado. O artista, como o Deus da criação, fica dentro ou detrás, além, ou acima de sua obra, invisível, aperfeiçoado e alheio à existência, indiferente, aparando as unhas" (James Joyce versus Julian Nazario)

  Neste sentido o artista, verdadeiro rival dos deuses, demiurgo e criador de um mundo absolutamente novo, criado tal como na criação divina exnihilo, daria razão a Bakhtin, no sentido em que na fase final da sua obra teria superado todas as vicissitudes terrenas e infernais para, por pura purga ascendente, se alcandorar finalmente à dimensão do Olimpo, ou seja do paraíso dantesco. A ressureição e a ascensão ao Olimpo é aquilo que o artista persegue através do sofrimento existencial mas também através do trabalho laborioso do alquimista que no seu laboratório põe em perigo a própria vida para um dia poder lograr o flogisto salvador do génio, avatar glorioso do divino.

  Há um texto de Alfredo Margarido que não cabe citar aqui mas que faz uma brilhante síntese que resume a dimensão experimental e portanto metalinguística da obra de James Joyce no seu todo, onde ele designa por exílio o que eu designo por reino e Bakhtin por paraíso. Mas, em boa verdade todas estas palavras, no âmbito da criação artística, possuem o mesmo significado enquanto arquétipos da busca solitária do caminho que conduz o artista à descoberta e à afirmação da sua voz. Porém, o reino dos artistas possui uma limitação que é também a sua grandeza humanista digamos assim, uma vez que o que se visa através da arte é um mundo que só se torna possível a partir da viagem iniciática da formação do artista. Mas essa viagem e esse caminho começam por ser a demanda de Si, a descoberta do Eu, e do Genius que o Eu alberga e só essa descoberta pode abrir as portas para a 'transcendência' e é por isso que o Retrato do Artista Quando Jovem "é mais do que uma obra autobiográfica. Ela é o relato da trajectória de um homem em busca do pleno conhecimento de si mesmo", ou seja, da transcendência que o habita.

Retrato do Artista Quando Jovem

▸ Retrato do Artista Quando Jovem

Autor:Joyce James

Editora:Difel, Lisboa

Data de Publicação:1989