VIAGEM AO PAÍS SEM MEMÓRIA Manuel Afonso Costa

Poeta, ensaísta e professor universitário.

VIAGEM AO PAÍS SEM MEMÓRIA

“Livro inclassificável este: não é romance, não é novela, não é conto, não é ensaio,
não é documento, não é testemunho, não é relato: é tudo isso e não é nada disso,
uma escrita a pulso firme no puro gume, no limite da técnica, jogo de póquer aberto ganho
contra o leitor com todas as cartas à mostra, sequência de bilhar às três tabelas
numa exata, fascinante geometria de palavras”.

 

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura:
A 2 de Outubro de 1925, nasceu José Cardoso Pires em São João do Peso, no concelho de Vila de Rei, na parte beirã do Pinhal. Frequentou o Liceu Camões e a Faculdade de Ciências onde, porém, nunca se viria a formar em Matemáticas. Em 1945 alistouse na Marinha Mercante, mas também não foi muito bem-sucedido nesta actividade tendo acabado por se tornar jornalista. A dada altura tornou-se director das Edições Artísticas Fólio onde promoveu alguns escritores nacionais e estrangeiros que marcaram a literatura do século XX. O Delfim, é geralmente considerado a sua obraprima. Faleceu em 1998 e repousa no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Do conjunto da sua obra destaco a novela O Anjo Ancorado de 1958, o ensaio de 1960 intitulado A Cartilha do Marialva, O romance O Hóspede de Job de 1963, em homenagem ao irmão falecido em acidente de aviação militar, o livro de crónicas na antecâmara da morte De Profundis, Valsa Lenta e finalmente o aclamado romance A Balada da Praia dos Cães de1982.

Pode-se falar de um abismo branco aquele em que José Cardoso Pires mergulhou quando sofreu um AVC em 1996. Viria, como se sabe a falecer de outro AVC, este em 1998. Entre um ano e outro, entre os dois AVC o escritor teve tempo para recuperar as suas faculdades e escrever este texto notável. Durante um certo período de tempo José Cardoso Pires viveu numa espécie de limbo intermédio, pois as faculdades mais afectadas foram justamente a memória, a oralidade e a escrita. O autor fiel à ironia que sempre o caracterizou e em particular aos seus outros romances chegou a pensar designar o livro por memória descritiva, o que no caso seria uma memória de uma desmemória, pois a memória foi justamente o que ele perdeu, circunstancialmente. A narrativa é para mim surpreendente, pois não esperava num texto desta ordem um rigor tão grande. O autor poderia ter caído num registo mais impressivo e até emocional, mas de uma forma notável consegue um distanciamento analítico, uma quase frieza e uma concisão objectiva a todos os títulos brilhante, intelectualmente brilhante e claro literariamente perfeita, mais perfeita que em muitos dos seus romances. Muitos críticos evidenciaram a simplicidade do texto. Nada de mais errado, para mim, simplicidade é o que não caracteriza o texto. O texto é complexo, elaborado e rebuscado mesmo, mostrando um ensaísta de largos recursos. O romancista não descreve a doença com simplicidade, mas antes com frieza e ironia. O texto não está ao alcance de qualquer um, embora pareça. Tenho sérias dúvidas de que a maior parte tenha compreendido o texto na sua profundidade e complexidade.

Este curto extracto bastará para confirmar o que disse:

“Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali. Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém”.

Dificilmente se poderia dizer melhor. Há no texto uma lucidez estranha. Como é que se regressa de um AVC num espaço de tempo tão curto em condições de escrever como provavelmente Cardoso Pires nunca chegou a escrever. Convém não esquecer que Cardoso Pires foi um escritor de excelência, mas este documento literário possui qualquer coisa de enigmático. O médico neurologista que assina o prefácio e que foi o médico que assistiu o escritor durante a doença, não deixa de assinalar a imparidade do facto, a sua estranha singularidade. José Cardoso Pires veio do lado de lá, do fundo do abismo branco, para nos oferecer uma narrativa que tem todo o ar de ser inédita e única.

Mais uma vez volto a Lobo Antunes que viu logo a genialidade e complexidade do manuscrito, no lugar em que outros viram simplicidade:

“Livro inclassificável este: não é romance, não é novela, não é conto, não é ensaio, não é documento, não é testemunho, não é relato: é tudo isso e não é nada disso, uma escrita a pulso firme no puro gume, no limite da técnica, jogo de póquer aberto ganho contra o leitor com todas as cartas à mostra, sequência de bilhar às três tabelas numa exata, fascinante geometria de palavras”.

 

De Profundis Valsa Lenta

▸ De Profundis Valsa Lenta

Autor:José Cardoso Pires

Editora:Publicações Dom Quixote

Data de Publicação:1997